11 de dezembro de 2010
Samuel está morto
Uma amiga me mandou a mensagem por email. Eu já devia estar sabendo do acontecido, ela me encaminhava uma notícia de jornal e a declaração de um professor da FFLCH, expressando sua indignação e fazendo um chamado para uma manifestação pública. Fiquei sabendo naquele instante, sem saber ao certo o que. A causa da morte daquele Samuel ainda era desconhecida. Nada queria me explicar. Ninguém podia me dizer. Minha única certeza era de que não poderia ser meu amigo Samuel “Zabumba”, que eu conheci num curso sobre Rousseau. Lembro-me bem que nós três (ele, esta amiga e eu) discutimos o texto, contamos um pouco de nós, nos apresentamos juntos em aula. Em outro dia ele me contou que fazia um tempo parara com as drogas, “as pesadas e as leves”. Já tinha escapado de meia dúzia de infartos e comas. Depois, foram mais papos, cafés, pães, lanches, encontros no RU, na faculdade, no CRUSP. Mais e mais. Zabumba sonora, zabumba querida.
Um dia antes da minha viagem de estudos para ficar um ano em Paris, depois de tê-lo procurado no seu apartamento na USP, já indo embora tarde da noite, deparei-me com ele fumando no saguão vazio. Reconheci-o pelo brilho do cigarro e pelo seu jeito mal encostado na pilastra. “Que bom te encontrar, eu queria me despedir”. E eu também queria. Recomendou-me uma imersão radical na cultura francesa, “nada de ficar tomando caipirinha, comendo feijoada e ouvindo samba. Isso você já conhece”. Perguntei o que ele faria no ano que vem, além do mestrado com a Scarlett – e ele observava, se ela ainda o aceitasse – porque isso eu já sabia, ele não se cansava de me lembrar. Parecia seu único plano, estudar o conceito de ‘vida’ em Nietzsche, primeiro em um só livro; no doutorado, tendo em conta toda a obra. Bem, nada além do mestrado. A ‘vida’ era o plano da sua vida agora. Não, só plano não, sonho. E ninguém naquele saguão tinha dúvidas da importância disso. Tampouco que ele conseguiria. Após o longo abraço, fui embora.
Há uma semana, mandou-me um email, o mais longo e bonito que já recebi. Não teria condições de precisar o que ele dizia. É suficiente assinalar que ele reafirmava da forma mais comovente a sua vontade de viver e um amor absoluto pela filosofia, a ponto de enfatizar que gostaria que seus trabalhos de pós fossem as marcas de uma existência “que valeu a pena”. Não era um recado arrependido, um ‘mea culpa’. No entanto, só quando terminadas as pesquisas de mestrado e doutorado poderia ele morrer sem tristeza. Ele se preparava em todos os sentidos possíveis para a sua empreitada. Mudou sua alimentação, fazia exercícios, não saía mais para festas, lia regularmente e ouvia música para relaxar. Ele me descreveu tudo em detalhes.
Contra mim, reconheci-o no texto jornalístico que parecia falar de um estranho. Reconheci-o não por ele ser apenas mais um “homem, preto, pobre” a que parecia reduzido. Um Samuel sem dinheiro (morador do CRUSP, estudante de filosofia), cuja família era sem recursos, provinha do Ceará (da zabumba), um Samuel sem mulher e sem filhos. Reconheci-o no meio desse sem-tudo de dados disseminados em letras e lógicas negativas, que só sabiam afirmar o que ele não era e o que ele não tinha, quando percebi, olhando para mim, que algo incontornável se apresentava e que, entre um segundo e outro, um grito, um choro, o corpo amortecido, um esquecimento, uma lembrança. Por meio dessa notícia de jornal eu soube pela primeira vez seu nome completo e sua idade. Samuel de Souza, 42 anos. Coisas que não fazem a menor diferença. Que nunca nos incomodaram.
Ao email que me enviara eu havia dito que não teria coragem de responder nada corrido; pedia que ele aguardasse que lhe encaminhasse uma mensagem mais decente, escrita sem pressa. Que eu não poderei nunca mais enviar. Tudo o que eu não gostaria era ter entendido agora a nossa maior discussão, o que ele queria dizer quando me ensinava, entre um gole de café e outro, com o olhar firme e tranqüilo atrás dos óculos redondos, apontando a extrema radicalidade do pensamento de Nietzsche, que Deus não existir simplesmente não se compara a afirmar que ele está morto.