sábado, 4 de junho de 2011

transformaçao do normal

No âmbito LGBT, falar em normalidade parece uma provocação. Afinal, o termo serviu tradicionalmente para excluir “o diferente”. Anormais eram crianças órfãs, mulheres histéricas, feministas, ladrões, “deficientes” físicos e mentais e todos os classificados como desviados. Dessa ótica, defender a transformação do que seja considerado “normal” pode representar má-fé. A mera mudança do “grupo de risco”, apenas uma forma de mudar de abismo.
De outro modo, surgem sugestões politicamente corretas: a abolição de todo critério de norma, o ostracismo da idéia de “normal” da cidade das palavras. Tais propostas talvez soem bem na tela do site, mas na prática a teoria é bem outra. Pois não há conceito reprimido que deixe de se fortalecer ainda mais. Prova disso constituem justamente os termos politicamente incorretos. Sempre que possível, não se hesita utilizar as expressões, em tese, as mais ultrapassadas para se reafirmar a vivência de uma dimensão de violência que se quer a todo custo esvaziar. Diferentemente, termos apropriados por grupos discriminados perdem grande parte de seu potencial ofensivo (não é, bichona?).
Por isso, acho que às vezes mais vale deslocar o sentido da expressão “normal” que reprimir seu uso. Esse deslocamento foi operado de forma singular pelo médico e filósofo francês Georges Canguilhem, na tese que ele defendeu na faculdade de medicina de Strasbourg. Publicado pela primeira vez em 1943, o Ensaio sobre o normal e o patológico* ensina que o conceito de “normal” hoje utilizado no âmbito psicológico e social tem origem na medicina e foi mantido graças a uma tradição teórica de remissões problemáticas às obras de certos médicos do século XIX.
Ora, o que faz Canguilhem é demonstrar que, de um ponto de vista metodológico, a interpretação dos fenômenos médicos (e filológicos) que deram origem a esse conceito está equivocada. Para o autor, nem o ser vivo “normal” (saudável) é aquele que segue uma norma, nem o “anormal” (doente) é aquele que não segue norma alguma, imerso, portanto, em um estado de anomia biológica. Era isso o que reproduziam os manuais médicos que deram fundamento aos múltiplos usos do termo nos tempos modernos.
Para Canguilhem, o ser vivo só se mantém saudável na medida em que ele estabelece uma dupla relação com o meio ambiente. De um lado, ele sofre certas imposições irremediáveis desse meio, que o impelem à adaptação. Nesse sentido, ele permanece saudável apenas caso consiga exatamente se modificar, substituir suas “normas” internas, criando outras. De outro lado, ele deve impor ao meio ambiente seus valores. Isso quer dizer que, diante das possibilidades de escolha oferecidas, ele decidirá (e mesmo interpretará o que é ou não uma “possibilidade de escolha” para si) segundo sua concepção de mundo, suas idéias, seus valores. Nessa hipótese, há uma espécie de luta contra o ambiente para a modificação das normas até então válidas.
Assim, nos dois casos, constata-se que o que se relaciona à saúde não é a manutenção de uma norma estável e fixa, mas a capacidade de adaptação e de transformação do sujeito e do seu meio. A luta pela vida se traduz na luta contra a norma que passou a estar morta. O indivíduo doente não é aquele cujo corpo ou cuja mente não obedece a nenhuma norma. Ao contrário, o doente é aquele que só consegue viver sob a regência de uma única norma – a qual não encontra mais amparo no meio. O doente é o inadaptado por incapacidade de auto-modificação e de modificação externa. O que não consegue mais lutar, nem para alterar sua norma interna, nem para alterar o meio que está em torno de si.
Se tomarmos essas definições médicas de normalidade e patologia, o uso político-social delas oriundo teria repercussões profundas no seio da contemporaneidade. Inúmeros paralelos seriam possíveis ao se mencionar as noções de meio, valores, luta, modificação e criação de normas. De uma forma particular, e até mesmo contra a vontade de Canguilhem, é esse tipo de deslocamento do campo médico ao político-social – ainda que haja sempre uma ligação ou identificação essencial entre ambos – que o movimento LGBT tem feito nos últimos anos, talvez sem saber quais seriam suas próprias fontes ideológicas.
O que interessa é que essas “novas concepções” não geram uma simples inversão da hierarquia (da relação de forças), pois não se trata de dizer aos grupos homofóbicos que eles são doentes quando demonstram uma incapacidade profunda de abertura à mudança e ao diálogo que aponta para uma transformação das regras do jogo. A transformação aqui, não cabendo em um esquema dialético, deve ser mais radical e jamais encerrar a tensão sempre presente nas normas provisoriamente estáveis. Não há estado de superação absoluta. Em verdade, trata-se de afirmar a historicidade de todas as políticas, inclusive daquelas que procuram se legitimar em discursos supostamente imemoriais, que de fato pretendem apagar todos os rastros da memória das normas de seu meio de origem.

* Essai sur le normal et le pathologique

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