terça-feira, 25 de setembro de 2012

homenagem a salinas

Luiz Roberto Salinas Fortes 
(foto da Cosac Naify)

"O Departamento de Filosofia estava quase dizimado: professores cassados, exilados; estudantes presos, clandestinos, desaparecidos. Os sobreviventes iniciavam o penoso esforço da resistência. Salinas encarregara-se dos cursos de filosofia antiga, estudando A república com os alunos.
É difícil contar aos jovens estudantes de agora o que foi o dia-a-dia universitário de um tempo que alguns chamam de 'milagre' e, outros, de 'dura repressão'. Sem dúvida, muitos dos jovens de agora ouviram falar ou leram sobre aqueles tempos. Podem imaginar, mesmo que com dificuldade, o que teria sido viver sob o medo, temendo a casa e a rua, o lugar de trabalho e o de lazer, o dia de ontem (o que fiz?), o de hoje (que faço?), o de amanhã (que farão comigo?). Temer abrigar os perseguidos de agora para não tornar-se perseguido depois, mas fazê-lo, embora em pânico. Ter medo da prisão e da tortura, de trair amigos e perder família. Desconfiar dos outros, de si e da própria sombra. Talvez não seja incompreensível para os jovens de agora o que pode ser o terror, cuja regra é tornar-nos suspeitos, fazer dos suspeitos culpados e condená-los à tortura e à prisão sem que saibam de que são acusados e sem qualquer direito à defesa. O que me parece difícil é explicar aos mais jovens o que um filósofo tentou explicar para si e para seus contemporâneos, ao término da Segunda Guerra Mundial: que o mundo do pré-guerra (para eles) e o mundo da pós-ditadura (para nós) não é um mundo natural, existente por si mesmo, dom de Deus, da Razão ou da Natureza aos homens, um fato bruto ou uma ideia clara e distinta. E que o mundo da ditadura não foi um mundo desnaturado, irracional, obra perversa de um Gênio Maligno ou de uma razão astuta e mesquinha, de abstratas "forças históricas", mas aquilo que, naquele tempo, Salinas estudava com seus alunos, analisando a figura de Trasímaco, para depois, estupefato, descobrir que a filosofia de que dispúnhamos não podia dar conta das engrenagens do poder e que nem mesmo Maquiavel poderia imaginar-se em tal caricatura de O Príncipe.
(...)
Amigos, temíamos o dia da defesa da tese, não sabendo o que poderia acontecer a Salinas diante de uma situação de interrogatório. Naquela tarde de 74, o salão nobre da faculdade estava repleto: colegas, estudantes, amigos, velhos conhecidos, vieram todos para que Salinas soubesse do apreço merecido (...) A tese fora considerada excelente, mas precisava ser arguida. Arguiu-se. Arguimos. E Salinas não conseguia ouvir-nos. Cada um de nós sabia que ele não se via naquela sala, mas noutras.
(...)
Quantas vezes vi Salinas apertar as têmporas – gesto último, que teve ao morrer – adivinhando uma dor sem nome, embora eu não soubesse que batia contra as grades sua própria cabeça, inscrição em seu corpo das barras das prisões onde tentaram roubar-lhe o espírito. Quantas vezes ouvi Salinas tropeçar na frase iniciada, tateando as palavras, perder o fio da meada e, não podendo alcançar meus ouvidos, tentar alcançar-me os olhos, lançando-me um olhar, misto de pasmo e agonia, fazendo-me adivinhar que a teia da tortura prendia-lhe a voz e voltava-lhe os olhos para cenas invisíveis aos meus. Quantas vezes pedi que me dissesse por que, escritor de clareza incomparável, falar se lhe tornara tão penoso. Às vezes, sorria apenas. Outras vezes, ria um riso tão gaguejante quanto sua fala. Por vezes, ria um riso solto, os olhos faiscantes. Um dia, deu-me a ler a primeira versão deRetrato calado"

(Apresentação de Marilena Chauí, em Retrato Calado, de Luiz Roberto Salinas Fortes - SP: Cosac Naify, 2012)

3 comentários:

Anônimo disse...

Esse post veio na hora certa,assisti recentemente um "Roda Viva" com o cientísta social Paulo Sérgio Pinheiro falando sobre o papel da Comissão da Verdade.

Anônimo disse...

Esse post veio na hora certa,assisti recentemente um "Roda Viva" com o cientísta social Paulo Sérgio Pinheiro falando sobre o papel da Comissão da Verdade.

Anônimo disse...

Fer, estou com muita mas muita saudade de ti que nem vou continuar.