segunda-feira, 26 de julho de 2010

Discurso Marilena Chauí (terceira parte)

"(...)
Resta, porém, explicar por que aceitei a honraria francesa e as generosas homenagens de meus colegas, amigos, estudantes e funcionários brasileiros.
Um leitor dos primeiros parágrafos do Tratado da emenda do intelecto há de se surpreender que eu as aceitasse, pois Espinosa afirma que nós nos perdemos de nós próprios e dos outros quando consideramos um bem supremo, entre outras coisas, as honras. Todavia, o leitor paciente há de esperar alguns parágrafos seguintes, quando o filósofo também afirma que as honras são boas quando as desejamos com moderação. A honra é uma paixão alegre, que fortalece nossa potência de existir, pensar e agir.
No entanto, sou eu, agora, que me pergunto por que aceitei essa honra.
Para essa indagação, possuo duas respostas, uma delas psicológica ou biográfica e uma outra, política.
Conta minha mãe, que, em 1946, visitou nossa pequena cidade interiorana um pianista polonês que deu um concerto. Depois de tocar esplendorosamente por mais de uma hora, o pianista levantou-se e indagou se havia na platéia quem tocasse piano e convidava os pianistas locais a tocar algumas peças. Embora houvesse no público três professoras de piano e algumas alunas adolescentes, ninguém se apresentou. Para surpresa e pavor de minha mãe, eu, com cinco anos de idade e recém-iniciada no piano, levantei-me, fui ao palco e toquei Danúbio Azul, numa versão simplificada. O que minha mãe, a platéia e o pianista jamais souberam foi o motivo de eu ter ido executar infantilmente o Danúbio Azul. Longe de ser a pretensão de alguém que se julgava pianista, dirigi-me ao palco porque não pude suportar que o pianista polonês convidasse alguém para reunir-se a ele naquilo que amava fazer e que ninguém se juntasse a ele, deixando-o solitário no palco. Foi o sentimento de sua enorme solidão que me levou ao piano.
Se narro esse episódio é porque, e aqui vem minha resposta política, num mundo acadêmico hegemonicamente masculino, considero intolerável a solidão das mulheres e por isso, ao ser chamada ao palco da honra, nele subi para que nele também estejam as mulheres.
Num ensaio belíssimo, chamado O silêncio das romanas, o helenista e romanista Moses Finley nos lembra que as mulheres de Roma não possuíam nome próprio, pois seus nomes eram apenas os de suas famílias escritos no feminino. Dessas mulheres, escreve Finley, não possuímos nada, sequer uma carta, um poema. Possuímos apenas as inscrições em suas lápides, nas quais pais, maridos e filhos dizem que foram filhas, esposas e mães extremosas e amadas. Penso que a homenagem que hoje me é feita faz parte do reconhecimento do nome próprio das mulheres, e que ao aceitá-la, contribuo para diminuir nossa solidão.
Num comovente ensaio, Um quarto para si, um ciclo de conferências dedicado à relação entre as mulheres e a literatura, Virgínia Woolf propõe uma ficção. Imaginemos, diz ela, que Shakespeare tivesse tido uma irmã e que ela, como ele, fosse extremamente inteligente, sensível, bem dotada para as humanidades, talentosa para a poesia e para a dramaturgia. Enquanto ele recebia uma educação propícia a desenvolver seu talento, ela era treinada nos afazeres domésticos e na preparação para o casamento. Quando ele partiu para Londres, ela deveria partir com um marido. Inconformada, fugiu também para Londres. Ali, porém, não conseguiu publicar seus poemas nem encenar suas peças, não tinha abrigo, comida nem agasalho para os dias de frio. Numa noite de inverno, encolhida e na mais profunda solidão, ainda jovem, morreu na neve, ignorada por todos e de todos desconhecida. E escreve Virgínia:

A irmã de Shakespeare, da qual ninguém fala, vive ainda. Ela vive em vós e em mim e em inúmeras outras mulheres que não estão presentes aqui esta noite porque estão lavando os pratos ou ninando seus filhos. Mas ela vive, pois os grandes poetas não morrem jamais, são presenças eternas; apenas esperam a ocasião para aparecer entre nós em carne e osso. Hoje, creio, está em vós o poder de dar essa ocasião à irmã de Shakespeare. Eis minha convicção: [...] se tivermos 150 libras de renda e um quarto só para nós, se adquirirmos o hábito, a liberdade e a coragem de escrever exatamente o que pensamos, se conseguirmos sair da sala-de-estar e ver os humanos não apenas em suas relações uns com os outros, mas também com a realidade [...], então se apresentará a ocasião para que a irmã morta de Shakespeare tome a forma humana a que teve tantas vezes de renunciar. [...] Mas não há que esperar sua vinda sem esforço, sem preparação de nossa parte, sem que estejamos resolvidas a lhe oferecer um novo nascimento, a possibilidade de viver e de escrever. Mas eu vos asseguro que ela virá, se trabalharmos por ela e que trabalhar assim é coisa que vale a pena.

A honra e a homenagem que hoje tão generosamente me são feitas são o reconhecimento de que é possível tirar as mulheres da solidão para vê-las dar vida à irmã de Shakespeare.
Muito obrigada".

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