MULHER, MULHERES
A filosofia como vocação para a liberdade
No dia 20 de junho de 2003, Marilena Chauí recebeu o título de Doutor Honoris Causa em Filosofia, concedido pela Universidade Paris VIII. Em razão desse fato, ela foi homenageada na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, quando proferiu um discurso com o título acima, de que publicarei três partes.
"(...)
Sei que nos dias que correm a filosofia é considerada uma profissão entre outras.
Com freqüência, tenho me perguntado por que me dediquei à filosofia.
Algumas vezes, julgo que ela me chamava desde o final de minha infância, de que tenho quatro recordações muito vívidas. A primeira delas é a de abrir um livro de minha mãe sobre filosofia da educação e em cujo primeiro capítulo – cujo conteúdo esqueci inteiramente – descobri duas palavras cujo sentido não compreendi, mas que ficaram em minha mente anos a fio: Sócrates e maiêutica. Somente na adolescência, durante o ciclo colegial, quando o professor João Villalobos ministrou um curso de lógica, aprendi o que significavam essas palavras, que volta e meia eu pronunciava pelo prazer de seu som. A segunda lembrança é a de abrir um livro de meu pai sobre introdução à psicanálise e descobrir que havia algo chamado inconsciente e um fato espantoso, chamado complexo de Édipo. Evidentemente, nada entendia sobre psicanálise, mas fiquei fascinada com o escândalo do que li. Lembro-me de haver tentado explicar o inconsciente e o complexo de Édipo a minha amigas do colégio das freiras e de vê-las horrorizadas, dizendo-me que eu deveria ir imediatamente me confessar e comungar para me livrar do horrível pecado contido em tais pensamentos. Mas não me confessei. Estava encantada demais com a descoberta para renunciar a ela. A terceira lembrança situa-se por volta de meus onze anos, quando li o primeiro romance. Era Quo Vadis. Li, reli, tresli, sabia de cor algumas passagens e particularmente o início, que me intrigara. De fato, logo nas primeiras linhas, é narrado que Petrônio estivera num festim no palácio de Nero e ali discutira com Lucano e Sêneca sobre a existência ou não da alma nas mulheres. E toda vez eu me perguntava como era possível alguém fazer essa pergunta, pois era evidente que as mulheres possuem alma. Na época, eu não sabia que devia essa certeza ao cristianismo, mas também não sabia que a simples admissão de alma nas mulheres não lhes havia adiantado muito. A quarta lembrança está em ter aberto um outro livro da estante de meu pai, intitulado Socialismo utópico e socialismo científico. Agora, algo decisivo me aparecia, mesmo que eu não tivesse compreendido quase nada do que lia. Aparecia-me com clareza que a luta pela justiça, pela igualdade e pela liberdade não era uma luta moral, nascida do espírito da caridade, mas uma ação política consciente determinada pela própria história. Era possível uma sociedade nova, justa e igualitária não simplesmente por causa de nossa indignação diante da injustiça e da desigualdade, mas porque era possível compreender suas causas e destruí-las.
Outras vezes, porém, penso que o entusiasmo pela filosofia nasceu das aulas de João Villalobos, que ministrou a uma classe de adolescentes de dezesseis anos um curso de lógica, em cuja primeira aula, sem qualquer aviso prévio, expôs o conflito entre Parmênides e Heráclito e, na segunda, a diferença entre a argumentação de Zenão e a de Górgias. Fiquei boquiaberta (e deslumbrada) com o fato de que o pensamento era capaz de pensar sobre si mesmo, que a linguagem podia falar de si mesma, que perceber e conhecer poderiam não ser o mesmo. O mundo se tornava, ao mesmo tempo, estranho, paradoxal e espantoso e a descoberta da racionalidade como problema parecia abrir um universo ilimitado no espaço e no tempo.
Outras vezes, porém, penso que fui para a filosofia quando, no final da adolescência, não podia tolerar a cultura da culpa em que fomos criados e sentia que era preciso encontrar uma outra ética em que a liberdade e a felicidade pudessem identificar-se – essa procura iria conduzir-me a Espinosa.
Talvez por causa dessas lembranças não posso considerar a filosofia uma profissão entre outras. Penso que quem busca a filosofia como forma de expressão de seu pensamento, de seus sentimentos, de seus desejos e de suas ações, decidiu-se por um modo de vida, um certo modo de interrogação e uma certa relação com a verdade, a liberdade, a justiça e a felicidade. É uma decisão existencial, como nos aparece com tanta clareza nas primeiras linhas do Tratado da emenda do intelecto, de Espinosa. Essa decisão intelectual, penso, não é possível a menos que aceitemos aquilo que Merleau-Ponty chamou de "nossa vida meditante" em busca de uma razão alargada, capaz de acolher o que a excede, o que está abaixo e acima dela própria. Essa decisão, penso também, não é possível se não admitirmos com Espinosa que pensar é a virtude própria da alma, sua excelência.
O desejo de viver uma existência filosófica significa admitir que as questões são interiores à nossa vida e à nossa história e que elas tecem nosso pensamento e nossa ação. Significa também uma relação com o outro na forma do diálogo e, portanto, como encontro generoso, mas também como combate sem trégua. Encontro generoso porque, como nos diz Merleau-Ponty, no diálogo somos libertados de nós mesmos, descobrimos nossas palavras e nossas idéias graças à palavra e ao pensamento de outrem que não nos ameaça e sim nos leva para longe de nós mesmos para que possamos retornar a nós mesmos. Mas também combate sem trégua, porque, como explica Espinosa, embora nada seja mais alegre e potente do que a amizade e a concórdia, os seres humanos são mutáveis, somos passionais e naturalmente inimigos, excitamos discórdias e sedições sob a aparência de justiça e de eqüidade. Por isso, diz ele, precisamos evitar os favores que nos escravizarão a um outro e somente os que são livres podem ser gratos uns aos outros, experimentando em sua companhia o aumento de sua força de alma, isto é, a generosidade e a liberdade.
(...)"
A filosofia como vocação para a liberdade
No dia 20 de junho de 2003, Marilena Chauí recebeu o título de Doutor Honoris Causa em Filosofia, concedido pela Universidade Paris VIII. Em razão desse fato, ela foi homenageada na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, quando proferiu um discurso com o título acima, de que publicarei três partes.
"(...)
Sei que nos dias que correm a filosofia é considerada uma profissão entre outras.
Com freqüência, tenho me perguntado por que me dediquei à filosofia.
Algumas vezes, julgo que ela me chamava desde o final de minha infância, de que tenho quatro recordações muito vívidas. A primeira delas é a de abrir um livro de minha mãe sobre filosofia da educação e em cujo primeiro capítulo – cujo conteúdo esqueci inteiramente – descobri duas palavras cujo sentido não compreendi, mas que ficaram em minha mente anos a fio: Sócrates e maiêutica. Somente na adolescência, durante o ciclo colegial, quando o professor João Villalobos ministrou um curso de lógica, aprendi o que significavam essas palavras, que volta e meia eu pronunciava pelo prazer de seu som. A segunda lembrança é a de abrir um livro de meu pai sobre introdução à psicanálise e descobrir que havia algo chamado inconsciente e um fato espantoso, chamado complexo de Édipo. Evidentemente, nada entendia sobre psicanálise, mas fiquei fascinada com o escândalo do que li. Lembro-me de haver tentado explicar o inconsciente e o complexo de Édipo a minha amigas do colégio das freiras e de vê-las horrorizadas, dizendo-me que eu deveria ir imediatamente me confessar e comungar para me livrar do horrível pecado contido em tais pensamentos. Mas não me confessei. Estava encantada demais com a descoberta para renunciar a ela. A terceira lembrança situa-se por volta de meus onze anos, quando li o primeiro romance. Era Quo Vadis. Li, reli, tresli, sabia de cor algumas passagens e particularmente o início, que me intrigara. De fato, logo nas primeiras linhas, é narrado que Petrônio estivera num festim no palácio de Nero e ali discutira com Lucano e Sêneca sobre a existência ou não da alma nas mulheres. E toda vez eu me perguntava como era possível alguém fazer essa pergunta, pois era evidente que as mulheres possuem alma. Na época, eu não sabia que devia essa certeza ao cristianismo, mas também não sabia que a simples admissão de alma nas mulheres não lhes havia adiantado muito. A quarta lembrança está em ter aberto um outro livro da estante de meu pai, intitulado Socialismo utópico e socialismo científico. Agora, algo decisivo me aparecia, mesmo que eu não tivesse compreendido quase nada do que lia. Aparecia-me com clareza que a luta pela justiça, pela igualdade e pela liberdade não era uma luta moral, nascida do espírito da caridade, mas uma ação política consciente determinada pela própria história. Era possível uma sociedade nova, justa e igualitária não simplesmente por causa de nossa indignação diante da injustiça e da desigualdade, mas porque era possível compreender suas causas e destruí-las.
Outras vezes, porém, penso que o entusiasmo pela filosofia nasceu das aulas de João Villalobos, que ministrou a uma classe de adolescentes de dezesseis anos um curso de lógica, em cuja primeira aula, sem qualquer aviso prévio, expôs o conflito entre Parmênides e Heráclito e, na segunda, a diferença entre a argumentação de Zenão e a de Górgias. Fiquei boquiaberta (e deslumbrada) com o fato de que o pensamento era capaz de pensar sobre si mesmo, que a linguagem podia falar de si mesma, que perceber e conhecer poderiam não ser o mesmo. O mundo se tornava, ao mesmo tempo, estranho, paradoxal e espantoso e a descoberta da racionalidade como problema parecia abrir um universo ilimitado no espaço e no tempo.
Outras vezes, porém, penso que fui para a filosofia quando, no final da adolescência, não podia tolerar a cultura da culpa em que fomos criados e sentia que era preciso encontrar uma outra ética em que a liberdade e a felicidade pudessem identificar-se – essa procura iria conduzir-me a Espinosa.
Talvez por causa dessas lembranças não posso considerar a filosofia uma profissão entre outras. Penso que quem busca a filosofia como forma de expressão de seu pensamento, de seus sentimentos, de seus desejos e de suas ações, decidiu-se por um modo de vida, um certo modo de interrogação e uma certa relação com a verdade, a liberdade, a justiça e a felicidade. É uma decisão existencial, como nos aparece com tanta clareza nas primeiras linhas do Tratado da emenda do intelecto, de Espinosa. Essa decisão intelectual, penso, não é possível a menos que aceitemos aquilo que Merleau-Ponty chamou de "nossa vida meditante" em busca de uma razão alargada, capaz de acolher o que a excede, o que está abaixo e acima dela própria. Essa decisão, penso também, não é possível se não admitirmos com Espinosa que pensar é a virtude própria da alma, sua excelência.
O desejo de viver uma existência filosófica significa admitir que as questões são interiores à nossa vida e à nossa história e que elas tecem nosso pensamento e nossa ação. Significa também uma relação com o outro na forma do diálogo e, portanto, como encontro generoso, mas também como combate sem trégua. Encontro generoso porque, como nos diz Merleau-Ponty, no diálogo somos libertados de nós mesmos, descobrimos nossas palavras e nossas idéias graças à palavra e ao pensamento de outrem que não nos ameaça e sim nos leva para longe de nós mesmos para que possamos retornar a nós mesmos. Mas também combate sem trégua, porque, como explica Espinosa, embora nada seja mais alegre e potente do que a amizade e a concórdia, os seres humanos são mutáveis, somos passionais e naturalmente inimigos, excitamos discórdias e sedições sob a aparência de justiça e de eqüidade. Por isso, diz ele, precisamos evitar os favores que nos escravizarão a um outro e somente os que são livres podem ser gratos uns aos outros, experimentando em sua companhia o aumento de sua força de alma, isto é, a generosidade e a liberdade.
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5 comentários:
muito tempo depois descobri que meu interesse pela filosofia já pulsava em mim quando ainda criança sentado após uma pelada fica já escurecendo a olhar o céu com meus colegas e a nós indagar sobre como surgiu o mundo. quando sentei no banco escolar e em nossa primeira aula o professor márcio damin custódio sujeito que me fez sentir filosofia nos indagou do porque estávamos ali respodi que por charme sim a filosofia é um charme desde que se esqueça disso e seja uma pessoa desapegada. marilena perdõe-me a petulência mas sinto não poder concordar contigo ela é sim uma entre muitas outras coisas de igual importância, ou como diria wittegenstein nosso jogo professora
ô agui, ainda não estudei wittgenstein, mas (por presunção ou cara de pau)(ou por ambas) sinto que a filosofia não tem a mesma dinâmica das demais profissões. até hoje acho curiosíssimo que quem faça medicina vire médico, quem faça química vire químico, quem faça sociais vire antropólogo/cientista político/sociólogo, e quem faça filô vire historiador de filosofia (e não filósofo). vc não acha que tem alguma coisa aí?
é um problema sim lhe dou toda razão porque ela não tem uma finalidade nem um objeto ou toda realidade. lembro debord dizendo que era doutor em nada. mas continuo achando que o wittengestein tem razão pois veja que só jogam esse jogo aqueles que dominam ou conhecem mininamente seus conceitos como nas outras aréas.
é verdade, acho que há algo que nos iguala frontalmente às outras 'carreiras'. só que penso que o problema maior hoje da pessoa que faz filosofia, o meu problema, não é não (poder) saber algum conceito já criado, mas é poder criar conceitos por si, e na verdade é isso que é fazer filosofia, e nisso ela é diferente das demais, ou da maioria das demais profissões. conhecendo os conceitos 'dos outros' faço ""apenas"" história da filosofia.
bom mas se os conceitos são abstratos o filósofo é dispensável enquanto que para os historiadores da filosofia ainda restaria algo, ou seja, contar essa "história" até onde ela teve validade.
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