terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

“(...)
KALIAYEV: É grave. Mas era preciso.
FOKA : Por que? Você vivia na corte? Uma história com mulher, não? Bem feito como você é...
KALIAYEV : Eu sou socialista.
O CARCEREIRO : [Falem] Menos alto.
KALIAYEV, mais alto: Eu sou socialista revolucionário.
FOKA : Eis aí uma história. E que que você tinha que ser como você diz que é? Você tinha era que ficar tranquilo e tudo iria melhor. A terra é feita para os Barines.
KALIAYEV: Não, ela é feita para você. Há miséria demais e crimes demais. Quando houver menos miséria haverá menos crimes. Se a terra fosse livre você não estaria aqui.
FOKA : Sim e não. Enfim, livre ou não, nunca é bom beber um gole além do limite.
KALIAYEV : Não é jamais bom. Somente se bebe porque se é humilhado*. Chegará um tempo onde não será mais útil beber, onde ninguém terá mais vergonha, nem Barine, nem pobre diabo. Nós seremos todos irmãos e a justiça fará nossos corações transparentes. Você sabe do que falo?
FOKA : Sim, é o reino de Deus.
O CARCEREIRO : Menos alto.
KALIAYEV : Não é preciso dizer isso, irmão. Deus não pode nada. A justiça é nossa incumbência (um silêncio). Você não entende? Você conhece a lenda do santo Dmitri?
FOKA : Não.
KALIAYEV : Ele tinha um encontro com Deus na estepe, e ele se apressava quando encontrou um camponês cujo veículo estava atolado. Então santo Dmitri o ajudou. A lama estava espessa, o lamaçal profundo. Foi preciso batalhar durante uma hora. Quando isso acabou, santo Dmitri correu para o encontro. Mas Deus não estava mais lá.
FOKA : E daí?
KALIAYEV : E daí que há aqueles que sempre chegarão atrasados aos encontros porque há veículos demais atolados, e irmãos demais a socorrer.
Foka recua.
KALIAYEV :O que ele tem?
O CARCEREIRO : Menos alto. E você, velho, apresse-se.
FOKA : Estou desconfiado. Nada disso é normal. Não se costuma vir parar na prisão por conta dessas histórias de santo e de charrete. E depois tem outra coisa.
O carcereiro ri.
KALIAYEV, o olhando : O que é?
FOKA : O que se faz com aqueles que matam o grande-duque?
KALIAYEV : Enforca-os.
FOKA : Ah! (e ele vai indo embora, enquanto o carcereiro ri mais forte).
KALIAYEV : Fique. O que eu lhe fiz?
FOKA : Você não me fez nada. No entanto, você é tão Barine, não quero te enganar. A gente conversa, passa o tempo assim, mas se você deve ser enforcado isso não é bom.
KALIAYEV : Por que?
O CARCEREIRO, rindo : Vai, velho, fala...
FOKA : Porque você não pode me falar como um irmão. Sou eu que enforco os condenados.
KALIAYEV : Você não é prisioneiro também?
FOKA : Justamente. Eles me propuseram de fazer este trabalho e, para cada pendurado eles me retiram um ano de prisão. É um bom negócio.
KALIAYEV : Para perdoar seus crimes, eles te fazem cometer outros?
FOKA : Oh, estes não são crimes, porque são mandados. E depois, para eles dá na mesma. Se você quer saber minha opinião, eles não são cristãos”.

(Albert CAMUS, Les justes, France : Gallimard, 1950, p. 101-105).

* Estou ciente de que em Maringá isso geraria muitas controvérsias (regadas à mardita).

Um comentário:

camila schmitt disse...

há também as festas e os humilhados que não bebem