terça-feira, 24 de novembro de 2009

rabiscada

no cantinho da página seguinte só se podia ler escrito em azul borrado "é o novc". não arrancaram o tapete do "o", foi a borda da página que deixou metade dele escorregar sem mais nem menos. quero dizer, com menos. uma banda da letra se perdeu pras bandas de lá da mesa e nunca mais foi vista por aqueles capítulos.
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três pontinhos em uma grafia esprimida para ser lida com a lupa dos óculos e dos olhos ceguetas. de longe mal se sabia se o que vinha antes deles era um "e" ou um "l". as letras impressas que ficavam grudadas bem ao lado discutiam amplamente o assunto para saberem qual era a natureza daquele serzinho que alguém escrevera ali a mão.
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o "a" impresso não queria de jeito nenhum que ao seu lado alguém tivesse posto outro igual a ele. dizia que desse modo não poderia ser porque em português claro não haveria duas vogais seguidas. é claro que as demais letras, com receio de que a denominada intrusa pudesse competir com elas, contra-argumentavam com toda a sua tinta, até quase desbotarem. pro desespero de "a", alegavam que se houvesse um pequeno espaço entre as vogais uma poderia ser o início e a outra o fim de duas palavras distintas. assim, poderia muito bem ser que tivessem escrito uma letra "a" ao lado dele.
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o "a" impresso ficava muito apreensivo... dava dó até em quem nem gostava tanto dele. não suportando o rumo daquela soletração, resolveu apelar dizendo que tudo poderia acabar ficando ilegível. aquela frase - especialmente a palavra "ilegível" - silenciou todo o parágrafo de repente, que agora queria ouvi-lo. e ele (que não era bobo nem nada) aproveitou para bradar com o ar aristocrático e pomposo que o caracterizava, tentando disfarçar o medo que sentia por meio da sua disseminação geral: "se eu, que sou o elemento alfabético mais importante de todos, posso ser ignorado com a chegada dessa intrusa, que dirá vocês, que são o resto?!".
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no seu pensamento unilinear, não percebia que a outra letra só estava ao seu lado por acaso, sem pretensão alguma de lhe tomar o sentido - sentido, aliás, que não era um só, nem estava isolado só nele ("a"). mas receava não ser falado, tornar-se uma mera cauda da pronúncia da outra letra que porventura estivesse na palavra sua vizinha. isso era inconcebível, ainda mais sendo ele um tipo impresso! "que direito", pensava, "aqueles elementos de caneta bic achavam que tinham?!".
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sentia-se ameaçado. de cima para baixo, de ladinho, de baixo para cima: onde a letra impressa desse lugar lá estaria, de um dia para o outro, um povoamento de novas expressões, palavras ou siglas inscritas. o tema gerou crise naquela página, que durou e perdurou até as vogais e consoantes mal-ditas resolveram se juntar à sopa de letrinhas. explicaram que a presença delas lá só se justificava porque havia letras impressas, as quais tentavam esclarecer, pontuar, descrever, resumir (ninguém se atreveu a assinalar que também podiam servir para discordar delas). que, enfim, seriam complementares, poderiam ser amigas!
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muitas se animaram na hora, e letras de diferentes origens passaram a se integrar imediatamente, num clima descontraído e bem linguajeiro de sonoridades. porém, "a" não agiu assim. ele ponderou longamente sobre o que acabara de ouvir. fez e refez seu raciocínio algumas vezes até se assegurar de sua exatidão - o bastante para mais uma vez estufar aquela sua barriguinha. agora ele se gabaria apresentando-se como a razão de ser daquele amontoado de seres de segunda classe, dependurados nos espaços em branco das folhas, fora da pauta das linhas, muitos deles sem identidade definida, "recadinhos vãos".
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foi aí que a última letra da palavra "novc" interveio. ela afirmou que se sentia muito bem incompleta como estava. seu inacabamento era uma forma que a satisfazia. tinha dia em que gostava de se ver como "e"; em outros, como "c". mas do que ela gostava mesmo era de se ver como parte do novo. por mais que volta e meia estivesse no plano de alguma linha, era sempre bom poder se lançar nas entrelinhas do sentido e do non-sense.

Um comentário:

Unknown disse...

Gostei muito! Ainda que me perca no diálogo do "a" com as letras, achei bem intrigante e original.