terça-feira, 31 de agosto de 2010

O teatro alquímico [parte 1]
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Entre o princípio do teatro e o da alquimia há uma misteriosa identidade de essência. É que o teatro, como alquimia, é, quando considerado de seu princípio e subterraneamente, ligado a um certo número de bases, que são as mesmas em todas as artes, e que visam, no domínio espiritual e imaginário, uma eficácia análoga àquela que, no domínio psíquico, permite produzir realmente ouro. Mas há ainda entre o teatro e a alquimia uma semelhança maior, e que leva metafisicamente muito mais longe. É que a alquimia, como o teatro, são artes por assim dizer virtuais, que nelas mesmas não carregam mais seu fim que sua realidade em si próprias.
Lá onde a alquimia, por seus símbolos, é como o Duplo espiritual de uma operação que só tem eficácia sobre o plano da matéria real, também o teatro deve ser considerado como o Duplo - não desta realidade cotidiana e direta que pouco a pouco o reduz a não ser mias que cópia inerte, tão vã quanto edulcorada, mas de uma outra realidade perigosa e típica, dos Princípios, como dos golfinhos, quando eles mostram suas cabeças apressando-se para reentrar na obscuridade das águas.
Mas esta realidade não é humana, mas inumana, e o homem com seus modos ou com seu caráter conta com ela, é preciso dizê-lo, muito pouco (?: un fort peu). E do homem podia ficar quase só a cabeça e um tipo de cabeça absolutamente desnuda, maleável e orgânica, onde permanecia a matéria formal exatamente suficiente para que os princípios ali pudessem desdobrar suas consequências de uma maneira sensível e acabada.
(...)
Todos os verdadeiros alquimistas sabem que o símbolo alquímico é uma miragem como o teatro é uma miragem. E esta perpétua alusão às coisas e ao princípio do teatro que se encontra um pouco próximo aos livros alquímicos, deve ser compreendido como o sentimento (de que os alquimistas têm a mais extrema consciência) da identidade que existe entre o plano sobre o qual evoluem os personagens, os objetos, as imagens, e de uma maneira geral tudo o que constitui a realidade virtual do teatro, e o plano puramente suposto e ilusório sobre o qual evoluem os símbolos da alquimia.
(...)
Eu me explico. E talvez, de todo modo, já se tenha compreendido que o gênero de teatro ao qual fazemos alusão nada tem a ver com este tipo de teatro social ou de atualidade, que muda com as épocas, e em que as idéias que o animam na origem não se encontram mais que em caricaturas de gestos, mal conhecíveis em razão de terem mudado de sentido. Trata-se de idéias do teatro típico e primitivo, como de palavras, que, com o tempo, deixaram de fazer imagem, e que, ao invés de serem um meio de expansão, não são mais que um impasse e um cemitério para o espírito.
Talvez antes de ir além se nos demandaria definir o que entendemos por teatro típico e primitivo. E, por esse caminho, entraremos no coração mesmo do problema.
Se se coloca, com efeito, a questão das origens e da razão de ser (ou da necessidade primordial) do teatro, encontra-se, de um lado e metafisicamente, a materialização ou, melhor, a exteriorização de um tipo de drama essencial que conteria de uma maneira ao mesmo tempo múltipla e única os princípios essenciais de todo drama, já orientados eles mesmos e divididos, não o bastante para perderem o caráter de princípios, mas o bastante para conter de modo substancial e ativo, isto é, cheio de descargas, perspectivas infinitas de conflitos. Analisar filosoficamente um tal drama é impossível, e não é senão poeticamente e arrancando o que podem ter de comunicativo e de magnético aos princípios de todas as artes que se pode, por formas, por sons, músicas e volumes, evocar, passando através de todas as similitudes naturais das imagens e das semelhanças, não direções primordiais do espírito, que nosso intelectualismo lógico e abusivo reduziria a serem apenas inúteis esquemas, mas de tipos de estados de uma acuidade tão intensa, de um corte tão absoluto que se sintam através dos tremores da música e da forma as ameaças subterrâneas de um caos tão decisivo quanto perigoso.
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(Antonin ARTAUD, Oeuvres, France: Gallimard, 2004, p. 532-533)

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

A Anaïs Nin

[Paris, 18 de maio de 1933]

Eu trouxe muitas pessoas, homens e mulheres diante da maravilhosa lona, mas é a primeira vez que eu vi uma emoção artística tocar um ser e o fazer palpitar como o amor. Seus sentidos tremeram e eu me dei conta de que em você o corpo e o espírito estavam formidavelmente ligados, pois uma impressão espiritual pura podia desencadear no seu organismo uma tempestade muito poderosa. (...)
Sendo o que você é, você deve compreender a grande alegria dolorosa, e mesmo a estupefação que eu experimento ao reencontrá-la assim: de uma só vez vejo completada, exatamente, hermeticamente preenchida (em todos os sentidos) minha solidão sentimental infinita, e preenchida de uma maneira que me assusta (...) [a ponto de] me fazer crer que os milagres são desse mundo, se eu pensava que nem você nem eu somos absolutamente desse mundo, e é este encontro perfeito demais que me estupefata e me afeta como uma dor. (...)
Você já pôde ver que onde sobre certos pontos tenho intuições, tipos de revelações fulgurantes, sobre outros eu não sou senão obscuro e estúpida, as coisas mais simples que escapam e é preciso uma compreensão de uma sutileza rara para admitir, para aceitar essa mistura, quando os obscuros afetam os sentimentos que se tem o direito de esperar de mim. Várias coisas nos aproximam terrivelmente, mas uma sobretudo: nosso silêncio. Você tem o mesmo silêncio que eu. E você é a única pessoa diante da qual meu próprio silêncio não me é incômodo. Você tem um silêncio veemente no qual se diria que se sentem passar as essências, eu o sinto estranhamente vívido, como uma armadilha aberta sobre um abismo, onde se sentiria o murmúrio silencioso e secreto da terra. Não há poesia inútil e fabricada em tudo isso o que te conto, de todo modo, você o sente bem.
(...) mas mesmo que em alguns momentos eu seja cego, tenho medo que o destino também a cegue, que você perca bruscamente o contato com todas as suas descobertas, com esta vida que faz meu amaravilhamento, tenho medo, para dizer tudo, que seu corpo de uma vez a habitue e faça com que você não me reconheça mais, ou que em um desses períodos, em que eu me separe de mim, a decepção que você provará faça que você pare de me reconhecer e que eu a perca, que eu a reperca por completo. Alguma coisa de maravilhoso acaba de começar, algo que pode preencher uma vida toda inteiramente, eu o digo com toda a sinceridade da minha alma, toda a seriedade e toda a gravidade de que eu sou capaz, isso desde oito dias, amanhã faz oito dias que eu senti minha vida radicalmente transformada e ontem foi a consagração material dessa transformação radical. Escreva-me, escreva-me uma carta humana, completa em que você me diga o preço que você estabelece para a nossa união, e as razões que você diria ter para desconfiar de mim sob uma certa forma. Quando lhe peço para me detalhar o preço da nossa união eu lhe convido a fazer viver imagens diante de mim, imagens em que eu sinta nossa própria vida. Depois de ontem tenho o gosto de uma boca de mulher que me persegue, mas como uma idéia, como uma essência. Este gosto não é mais uma coisa do corpo, ele me mostra, a nu, o sentido mesmo de uma alma, ele me diz um monte de coisas sobre toda uma vida secreta e que sem ele eu não conheceria. Tenho um nome que minha mãe me deu quando eu tinha quatro anos, de que os íntimos me chamavam: Nanaqui. Eis o que me descreve também na minha inocência e no mais puro de minha vida.
Nanaqui.
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(Antonin ARTAUD, Oeuvres, France: Gallimard, 2004, p. 393-395, livre tradução)

sábado, 28 de agosto de 2010

me pergunto se a influência de uma língua em outra pode ultrapassar o aspecto lexical e alcançar o nervo sintático, gramatical. e se a organização dos significados se dá de modo diacrônico, uns em relação aos outros, qualquer modificação semântica, como uma folha que tomba leve sobre um lago calmo pode alterar o movimento ou não-movimento de tudo quanto estiver ali reciprocamente implicado, também revolve o plano significativo da linguagem. há de se conjugar a isso alguma compreensão, seja ela estruturalista, pós, anti, qual for enfim, sobre o efeito de perturbações estruturais de uma língua em outra no plano mais geral da linguagem? pode ser que a organização dessas estruturas ocorra de modo totalmente diferente, independente, sem a menor causalidade.
Aguardo você há 17 minutos, mon amour. Não sei por que, pressenti que isso fosse ocorrer. Nossa despedida apressada de ontem me deixou com uma impressão ruim. Ou talvez foi algo que fiz, será que o modo como disse que precisava ir, sem dar tempo pra você pensar em qualquer coisa? De repente, causei algum ciúme te dizendo que tinha que me desligar do chat porque a Marina acabara de acordar, já eram 2 da madrugada. Você pode ter pensado que a Marina podia acordar sozinha, sem alguém para ajudá-la, sem que alguém fosse cobri-la ou abraçá-la, por já estar bem grandinha. Mas ela ia embora, te disse que iria acompanhá-la com um certo ar de que isso seria sagrado, e era, e quem sabe naquele momento você tenha comparado a importância, para mim, da nossa conversa com a da despedida da Marina, sentido nosso contato inferior. Injustamente inferior, porque nós estávamos há milhas de distância, enquanto ela estava bem ali, do meu lado, estalando as madeiras do quarto ao se levantar demoradamente, por certo ainda tonta com nossa briga de ontem, com sono e com o vinho tinto que tomamos pra ver se assim conseguíamos falar com mais fluência a nossa língua materna. Eu precisava pelo menos acompanhá-la, minha querida, ainda que não me sentisse tendo que me redimir por nada, sobretudo porque não havia nenhuma outra razão que me levasse a isso. Era uma estratégia sem objetivo e sem pensamento, um carinho, como se diz. Injustamente, meu benzinho. Pedi para que nos reencontrássemos hoje. E não teria mais como reencontrar a Marina tão cedo. Você topou.
Você está atrasada mais de uma hora, quem sabe calculamos mal o fuso? Ou então, me pergunto desde nossa conversa de ontem se quando calculamos a diferença dos ponteiros de nossos relógios –havíamos nos encontrado apenas por acaso na internet, você deve se lembrar bem, eu fiquei eufórica quando me dei conta disso – você não estava em um computador ainda programado no horário de verão (ou de inverno, nunca sei que horas deveriam ser), essas lan-houses não ligam em atualizar os relógios das máquinas que suam e queimam todas as tardes ligadas nas tomadas quentes. Poxa, eu havia te falado que, me encontrando às 5 horas daqui, você deveria estar às 13h ou 14h daí, seria preciso calcular o fuso corretamente. Ah, mas você é tão teimosa! Por que você insiste em se deixar ser assim? É capaz que tenha pensado que só me encontraria às 14h de São Paulo, fosse que horário fosse em Paris. Devo te informar que isso seria às 19h daqui, que então eu deveria te esperar duas horas a mais, mas, enfim, não falta tanto para chegar lá. Já esperei uma hora e quarenta. Posso esperar mais vinte minutos. E, quem sabe, se você chegar um pouco atrasada quanto ao horário que você mesma estabeleceu, uns 15 ou 20 minutos a mais, bem, não haverá problema non plus, não vale a pena se estressar por conta de um atraso.

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

não sei pra quê este sofá cheio de band-aids, esta matemática de desenhos -, +, x, =, I, nenhum deles pode abraçar minha dor.

tradução livre do poema da separação

Se séparer c’est avoir la maison envahie
vérifier les éléments de la salle, l’armoire,
le portefeuille, sans être sûr
de ce qui a été pris.
Regarder suspicieusement
les objets qui ont vu
et ne disent rien.

Se séparer c’est une porte
fracturée de l’intérieur

(Fabrício Carpinejar, "Cinco Marias", Bertrand Brasil, 2004)

partida

em maio passado comprei um livro. quando parti, coloquei-o no fundo da mala. te tomei algo, enfim.

absence 2

absinto é a bebida da saudade.

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

absence

a palavra vem do latim, dizem. na fase clássica da língua, o prefixo que indicava distância era ab. com a distância - da fase, em português foi virando au. sens até hoje indica sentimento, sensação, sentir. tudo isso é muito bonito, essa descrição tão ausente. mas não me peça pra explicar saudade.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

vou parecer medíocre, mas quando saí da gare du nord e tive o primeiro contato com paris não vi nada de excepcional. minha amiga me perguntou, requerendo confirmação, se a cidade não era maravilhosa. mais por educação respondi o que ela queria ouvir, mas sem também ir além com aquilo. passei muito bêbada meu período de décolage, a inadaptação de fuso. só fui mudar o único relógio que tenho, o do meu computador, ontem à noite, quando me afastei mais da condição de estar em um tempo entrecortado. retomei o ar, respirei fundo e tentei estar presente aqui no presente, naquele que agora flagro já velho demais. senti um deslocamento maciço de instantes quando ontem um colega brasileiro comentou que a cidade era cinematográfica. como, às vezes, ele usa frases de efeito que não consegue explicar bem, pedi algum desbobramento e ele foi genial. "este prédio aqui [apontando para ele], não parece que foi planejado? que ele foi construído só para estar nesta rua dessa forma? e esta igreja, então? olha a angulação dela na rua! não é incrível? uma mão veio e a ajeitou aí". os exemplos foram perfeitos porque arbitrários, todos aqueles prédios estavam bem dispostos. e isso não queria dizer "perfeitamente alinhados", já que isso talvez implicasse uma pobreza estética. havia riqueza no encontro das linhas arquitetônicas dos diversos batîments, com árvores e as calçadas lisas e largas, com pouco pedestres e ciclistas, que formava um complexo de cantos e bordas a se perder de vista. cidade de detalhes, cada rua espelha um céu e o céu é lindo.
certas coisas não podem ser ditas em cada língua. ao mesmo tempo, ela me faz dizer outras coisas.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

"desolée pour le moquette". uma distração pode gerar um acidente comunicativo por aqui...

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

bobo quem não quer ser bonobo...
adoro o que a gente chama de mundo animal, porque ele passa tão alheio às nossas discussões sobre o que é natureza, o que é um comportamento natural ou desviante e sobre a suposta superioridade humana em relação a todos mais.
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http://www1.folha.uol.com.br/ciencia/785884-golfinho-faz-sexo-gay-para-manter-amigo-veja-ranking-animal.shtml

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

adeus, meu santo andré
eu desta terra vou me ausentar
eu vou para as europa
eu vou viver, eu vou morá

manha(ã) com minha vó

hoje acordei com a minha vó entrando em casa com uma bacia de mostardas mergulhadas n'água. "vim te ensinar a fazer arroz com mostarda". fui pegar o computador. ela assim: "deixa eu ver isso aí como é". foi a segunda vez que ela espiou a telinha, sentou ao meu lado no sofá. "quê que cê fez?". vó, entortei as letrinhas pra ficar mais bonitinho. nos intervalos da receita, a velhinha me cantou coisas da juventude, como moreira alves, dalva de oliveira e luiz vieira.

ARROZ COM MOSTARDA

relação entre os ingredientes:
* quase um maço de mostarda pra 1 xícara de arroz.
* pra 1 xícara de arroz, 2 xícaras de água
* sal, alho, óleo, tomate e cebola a gosto do freguês

lavar a mostarda e rasgar as folhas com a mão, ou cortar com a faca em tirinhas. refogar (torrar) o arroz com sal e alho e óleo numa panela à parte. depois, colocar as folhas no arroz e mexer um pouco. se você gostar de cebola e tomate, adicionar agora. a seguir, jogar a água fervendo. logo que ferver, tampar a panela e baixar o fogo para o mínimo. pronto!
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ARROZ 'SEHRI (arroz com cabelo de anjo)
relação entre ingredientes:
* pra 1 xícara de arroz, pelo menos 8 ninhos de macarrão cabelo de anjo
* pra 1 xícara de arroz, 2 xícaras de água (no mínimo)
* sal e óleo (e, se preferir, margarina ou manteiga)
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colocar pra refogar os ninhos de macarrão amassados com a mão e o óleo (minha vó sugere colocar também um pouco de manteiga ou margarina pra dar um gostinho bom). "coloca assim: não deixa queimar". adicionar o arroz à panela pra ele torrar. por fim, adicionar a água fervente e o sal a gosto. e não esquecer de passar o fogo pro mínimo, né, fia?

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

nada prometer pra tudo cumprir, ou nada cumprir pra tudo prometer?

domingo, 15 de agosto de 2010

"A História é um carro alegre
Cheio de um povo contente
Que atropela indiferente
Todo aquele que a negue"
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(Canción por la unidad latinoamericana, Pablo Milanês)

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

“Se eu fosse aquele cara que se humilha no sinal/ por menos de um real, minha chance era pouca/ mas se eu fosse aquele moleque de touca/ que engatilha e enfia o cano dentro de sua boca/ de quebrada, sem roupa, você e sua mina/ um, dois, nem me viu! já sumi na neblina/ Mas não! permaneço vivo, eu sigo a mística/ 27 anos contrariando a estatística/Seu comercial de TV não me engana/ eu não preciso de status, nem fama/ Seu carro e sua grana já não me seduz/ e nem a sua puta de olhos azuis/ Eu sou apenas um rapaz latinoamericano/apoiado por mais de cinquenta mil manos/ efeito colteral que seu sistema produz...” (Capitulo 4, Versículo 3, Racionais).

"A frátria órfã" - artigo da Maria Rita Kehl, escrito em 2000, sobre os Racionais: http://mariaritakehl.psc.br/resultado.php?id=67
Por que viver deprimido?

Depois de termos lido Maria Rita Kehl e depois de a termos ouvido falar ( ela nos brindou com uma bela exposição na noite de 26 de outubro em Fronteiras do Pensamento), vem-nos a vontade de conversar com ela por discorrer sobre coisas que nos interessam: depressão, tempo, vazio, medicamentos, droga...
Nem todos os conflitos originam-se da relação pai-mãe-filho. Ouça-se Deleuze! Pelo viés do Outro, Maria Rita ultrapassa o conflito familiar. No Outro cabe tudo o que está acima do outro (cada um de nós). O Outro abarca Deus, Deuses, Bem, Lei, Pai, Mãe, Mulher, Falo, Vazio, Opinião pública, o A-gente heideggeriano, Bullying, Velocidade, Riqueza... Houve época em que o Outro abarcava conceitos fixos, essências: Ser, Deus, Bem, Justiça, Amor, Lei... Porque tudo já estava feito, havia pouco a fazer. Ao longo dos séculos, o que era fixo se diluiu, o sólido virou líquido, a lei se converteu em princípios morais opressivos. O Outro (O Capital, por exemplo) nos faz exigências que nos deprimem. Se tempo é dinheiro, bom é aquilo que se pode comprar. Como as ofertas do mercado ultrapassam em muito nossa capacidade de consumir, caímos em depressão. Da depressão, recursos mágicos (dinheiro, medicamentos ou drogas) não nos redimem.
Maria Rita nos propõe outro caminho. Em lugar de nos orientarmos pelo princípio de que tempo é dinheiro, suponhamos que tempo seja a construção de nós mesmos. Se é assim, o vazio em nós, em torno de nós (outros), acima de nós (Outro) pode entristecer-nos, como pode chamar-nos a atuar. Quando? Quando não somos oprimidos pela necessidade (trabalhar para ganhar dinheiro), nem pela velocidade, nem por obrigações para ontem. O ócio, consumido pelo negócio, não é perda de tempo. Já dizia Drummond: “ganhei, perdi meu dia.” Dia perdido para o mundo dos negócios pode ser dia ganho para nós mesmos. Não delimitemos o dia da construção de nós mesmos ao nascer e ao desaparecer do sol, o dia de trabalho dedicado a nossa própria edificação dura a vida inteira.
O tempo de Maria Rita é agostiniano, o da espera ou bergsoniano, o da duração. Aqui entramos no território da ética. Viver eticamente não significa submeter-se a padrões impostos pela tradição. A tradição nos esmaga quando a arrastamos à maneira de um peso morto. Soa-nos aos ouvidos a palavra de Stephen Dedalus (um escritor inventado por James Joyce): “A história é um pesadelo do qual tento me libertar”. A história só não é pesadelo se a repensamos e a reinventamos. Se somos capazes de reconstruir, com fragmentos recolhidos de outros tempos, vivemos eticamente. Ética e poética se confundem. A poetização da existência começa na arquitetura da nossa vida, aliados a outros construtores.
Além do outro abre-se o espaço do Outro. O outro é limitado, o Outro é infinito. Se cruzamos os braços, o Outro nos esmaga. Se arregaçamos as mangas, o Outro nos oferece rotas imprevistas, múltiplas, ilimitadas. Os que vivem eticamente movem-se com os outros em direção ao Outro. Se não fizermos diferença entre os outros e o Outro, desaparecemos sufocados entre as quatro paredes a que nós próprios nos condenamos.
Se a distância que nos separa do Outro deprime, a depressão é o ponto de partida para grandes realizações. Em lugar da depressão, a arquitetura. Para os que vivem eticamente, a inutilidade é ganho. Inútil é a arte, o brinquedo, o canto, a dança, o escrever, o falar. No saber aproveitar a riqueza do inútil cotidiano reside o saber viver.
Um homem que soube viver eticamente foi Machado de Assis, pessoa de parcos recursos que poderia ter morrido no sem-sabor do emprego público. Revisitemos as últimas palavras de Brás Cubas, o das Memórias Póstumas. Declara a personagem que, por não ter tido filhos, não deixou a ninguém o legado de suas misérias. Brás Cubas, em lugar de entregar-se aniquilado a uma morte anônima, dedica as Memórias ao primeiro verme que devorou sua carne. É o triunfo da palavra, da arte, da invenção sobre a extinção. O mesmo Machado escreve o Instinto de Nacionalidade, ensaio memorável em que o ficcionista propõe que troquemos modelos do passado pela construção do futuro. Mais Machado e menos Prozac, além de outras descobertas maravilhosas como Zoloft, Cipramil e Luvox, medicamentos seguros, capazes de produzir relaxamento em pessoas sem patologia, deixando-nos despreocupados, tranqüilos, sem irritação, sem stress, felizes, massificados, inúteis."

(artigo de Donaldo Schüler sobre o livro O tempo e o Cão, escrito por Maria Rita Khel)

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

ontem estava no banheiro da facu e matutei um bocado sobre a disposição das coisas dentro da cabina. o que mais incomodou foi a descarga. centralizada, encaixada na parede para ralar no meio das costas da menina que se masturbasse no troninho contorcendo-se um pouquinho de prazer - não precisava ser muito. acontece que aquela localização supostamente anti-masturbatória era uma delícia (eis o argumento técnico deste post). afinal, não iria bater uma sentada, quase deitada no encosto da privada, com a cabeça na parede, gemendo baixinho pro comedor que atracasse sobre mim. me levantaria pra bater uma bem longa, bem devagar, as pernas bambas, pensando: chupa aqui, vai, viadinho, bem gostoso, vai, seu puto, engole minha porra.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

o duvidoso pelo certo

não acredito na esquerda nacionalista. mas não é somente por conta das (já suficientes) questões referentes ao nacionalismo em si mesmo, enquanto ideologia. penso que essa opção configure um equívoco nos dias atuais, considerando-a em termos os mais pragmáticos. enquanto se defende a ampliação ou a manutenção de direitos nacionais, por exemplo trabalhistas, perde-se de vista que o ataque - no fundo, inclusive interno - a eles vem de fora, ao menos em sua parte mais insuperável. e a causa desse movimento se mostra um tanto patente. em um mercado internacional, os produtos de países com menos direitos sociais tendem a apresentar vantagens competitivas quase indiscutíveis, no plano econômico, comparativamente aos de estados garantistas. uma camiseta no brasil não pode ter um preço semelhante a uma da china, porque aqui xs manufatureirxs, se legalizadxs, geram uma série de 'custos' de produção, frutos do pagamento de prerrogativas de trabalho, previdência social, segurança na fábrica, altos impostos (em tese justificados pois revertidos a políticas públicas também sociais-assistenciais)...
ora, se no jogo do mercado capitalista de hoje os países com direitos humanos menos assegurados são os mais competitivos, disso evidentemente resulta um tipo de pressão nos mais protetivos no sentido de que aumentem sua competitividade passando pela desregulamentação de direitos essenciais conquistados com muito custo (custos de outro tipo!). daí as idéias de "flexibilizar" os direitos trabalhistas brasileiros, ilustrativamente. as empresas não suportariam competir com as chinesas, tailandesas e mexicanas, que não pagariam tantos impostos e direitos em seus países, o que permitiria que seus produtos chegassem até o brasil a preços mais baixos que aqueles produzidos aqui.
a luta interna no brasil não pode evitar o movimento geral que tende a fazer com que os países com menos direitos humanos puxem, por meio do mercado capitalista, os países mais garantistas para o mesmo patamar de desproteção em que os primeiros se encontram. isso não quer dizer que se deva desistir da resistência doméstica. mas que cumpre à esquerda se esmeirar em uma luta global, por direitos internacionais. apenas alçando os direitos humanos a um nível de fato universal se evitará que o capitalismo continue funcionando, sem dificuldades, como um buraco negro que arrasta consigo, em poucos anos, em planilhas contábeis, conquistas de décadas e séculos. a esquerda nacionalista certamente não conseguirá resolver esses problemas. uma internacionalista, quem sabe?
Paris, de Santos Dumont aos travestis
(Moacyr Luz / Aldir Branco)

Paris,
Uma loura envolta em négligée
Ton-sur-ton e degradé
O meu francês é meio assim
Jabaculê
E esse impasse:
Me mudar da vila pra Montparnasse
Eu sei que o tempo urge
Do verde-amarelo pro bleu-blanc-rouge
Da Conde Bonfan pro Moulin Rouge

Très bien, que beleza:
Ver o pandeiro tocar a Marselhesa
Pra cada merci beaucoup
Eu mando um n'a pas de quoi
E le samba, voilà!
Com mon amour eu vou derreter
(Dieu!)
E qu'est ce que c'est que vous voulez
Si la question é remexer?
Paris, je t'aime!
Eu vou voar pra ver

***
detalhe: que título é esse?!

domingo, 8 de agosto de 2010

vontade de postar trechos de um lindo artigo de etnografia, mas muito difícil escolhê-los..

"Provações corporais: uma etnografia fenomenológica entre moradores de rua de Paris": http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-64452010000100005&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt


quarta-feira, 4 de agosto de 2010

filosofia do samba

Acreditei na paixão
E a paixão me mostrou
Que eu não tinha razão

Acreditei na razão
E a razão se mostrou
Uma grande ilusão

Acreditei no destino
E deixei-me levar
E no fim
Tudo é sonho perdido
Só desatino, dores demais

Hoje com meus desenganos
Me ponho a pensar
Que na vida, paixão e razão,
Ambas têm seu lugar

E por isso eu lhe digo
Que não é preciso
Buscar solução para a vida
Ela não é uma equação
Não tem que ser resolvida

A vida, portanto, meu caro,
Não tem solução

solução de vida (molejo dialético)
(paulinho da viola / ferreira gullar)

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

(foto da marina rs, paris)

as letras dão o recado

cuidado com as palavras...

(foto da marina rs, paris).