terça-feira, 31 de agosto de 2010

O teatro alquímico [parte 1]
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Entre o princípio do teatro e o da alquimia há uma misteriosa identidade de essência. É que o teatro, como alquimia, é, quando considerado de seu princípio e subterraneamente, ligado a um certo número de bases, que são as mesmas em todas as artes, e que visam, no domínio espiritual e imaginário, uma eficácia análoga àquela que, no domínio psíquico, permite produzir realmente ouro. Mas há ainda entre o teatro e a alquimia uma semelhança maior, e que leva metafisicamente muito mais longe. É que a alquimia, como o teatro, são artes por assim dizer virtuais, que nelas mesmas não carregam mais seu fim que sua realidade em si próprias.
Lá onde a alquimia, por seus símbolos, é como o Duplo espiritual de uma operação que só tem eficácia sobre o plano da matéria real, também o teatro deve ser considerado como o Duplo - não desta realidade cotidiana e direta que pouco a pouco o reduz a não ser mias que cópia inerte, tão vã quanto edulcorada, mas de uma outra realidade perigosa e típica, dos Princípios, como dos golfinhos, quando eles mostram suas cabeças apressando-se para reentrar na obscuridade das águas.
Mas esta realidade não é humana, mas inumana, e o homem com seus modos ou com seu caráter conta com ela, é preciso dizê-lo, muito pouco (?: un fort peu). E do homem podia ficar quase só a cabeça e um tipo de cabeça absolutamente desnuda, maleável e orgânica, onde permanecia a matéria formal exatamente suficiente para que os princípios ali pudessem desdobrar suas consequências de uma maneira sensível e acabada.
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Todos os verdadeiros alquimistas sabem que o símbolo alquímico é uma miragem como o teatro é uma miragem. E esta perpétua alusão às coisas e ao princípio do teatro que se encontra um pouco próximo aos livros alquímicos, deve ser compreendido como o sentimento (de que os alquimistas têm a mais extrema consciência) da identidade que existe entre o plano sobre o qual evoluem os personagens, os objetos, as imagens, e de uma maneira geral tudo o que constitui a realidade virtual do teatro, e o plano puramente suposto e ilusório sobre o qual evoluem os símbolos da alquimia.
(...)
Eu me explico. E talvez, de todo modo, já se tenha compreendido que o gênero de teatro ao qual fazemos alusão nada tem a ver com este tipo de teatro social ou de atualidade, que muda com as épocas, e em que as idéias que o animam na origem não se encontram mais que em caricaturas de gestos, mal conhecíveis em razão de terem mudado de sentido. Trata-se de idéias do teatro típico e primitivo, como de palavras, que, com o tempo, deixaram de fazer imagem, e que, ao invés de serem um meio de expansão, não são mais que um impasse e um cemitério para o espírito.
Talvez antes de ir além se nos demandaria definir o que entendemos por teatro típico e primitivo. E, por esse caminho, entraremos no coração mesmo do problema.
Se se coloca, com efeito, a questão das origens e da razão de ser (ou da necessidade primordial) do teatro, encontra-se, de um lado e metafisicamente, a materialização ou, melhor, a exteriorização de um tipo de drama essencial que conteria de uma maneira ao mesmo tempo múltipla e única os princípios essenciais de todo drama, já orientados eles mesmos e divididos, não o bastante para perderem o caráter de princípios, mas o bastante para conter de modo substancial e ativo, isto é, cheio de descargas, perspectivas infinitas de conflitos. Analisar filosoficamente um tal drama é impossível, e não é senão poeticamente e arrancando o que podem ter de comunicativo e de magnético aos princípios de todas as artes que se pode, por formas, por sons, músicas e volumes, evocar, passando através de todas as similitudes naturais das imagens e das semelhanças, não direções primordiais do espírito, que nosso intelectualismo lógico e abusivo reduziria a serem apenas inúteis esquemas, mas de tipos de estados de uma acuidade tão intensa, de um corte tão absoluto que se sintam através dos tremores da música e da forma as ameaças subterrâneas de um caos tão decisivo quanto perigoso.
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(Antonin ARTAUD, Oeuvres, France: Gallimard, 2004, p. 532-533)

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