segunda-feira, 30 de agosto de 2010

A Anaïs Nin

[Paris, 18 de maio de 1933]

Eu trouxe muitas pessoas, homens e mulheres diante da maravilhosa lona, mas é a primeira vez que eu vi uma emoção artística tocar um ser e o fazer palpitar como o amor. Seus sentidos tremeram e eu me dei conta de que em você o corpo e o espírito estavam formidavelmente ligados, pois uma impressão espiritual pura podia desencadear no seu organismo uma tempestade muito poderosa. (...)
Sendo o que você é, você deve compreender a grande alegria dolorosa, e mesmo a estupefação que eu experimento ao reencontrá-la assim: de uma só vez vejo completada, exatamente, hermeticamente preenchida (em todos os sentidos) minha solidão sentimental infinita, e preenchida de uma maneira que me assusta (...) [a ponto de] me fazer crer que os milagres são desse mundo, se eu pensava que nem você nem eu somos absolutamente desse mundo, e é este encontro perfeito demais que me estupefata e me afeta como uma dor. (...)
Você já pôde ver que onde sobre certos pontos tenho intuições, tipos de revelações fulgurantes, sobre outros eu não sou senão obscuro e estúpida, as coisas mais simples que escapam e é preciso uma compreensão de uma sutileza rara para admitir, para aceitar essa mistura, quando os obscuros afetam os sentimentos que se tem o direito de esperar de mim. Várias coisas nos aproximam terrivelmente, mas uma sobretudo: nosso silêncio. Você tem o mesmo silêncio que eu. E você é a única pessoa diante da qual meu próprio silêncio não me é incômodo. Você tem um silêncio veemente no qual se diria que se sentem passar as essências, eu o sinto estranhamente vívido, como uma armadilha aberta sobre um abismo, onde se sentiria o murmúrio silencioso e secreto da terra. Não há poesia inútil e fabricada em tudo isso o que te conto, de todo modo, você o sente bem.
(...) mas mesmo que em alguns momentos eu seja cego, tenho medo que o destino também a cegue, que você perca bruscamente o contato com todas as suas descobertas, com esta vida que faz meu amaravilhamento, tenho medo, para dizer tudo, que seu corpo de uma vez a habitue e faça com que você não me reconheça mais, ou que em um desses períodos, em que eu me separe de mim, a decepção que você provará faça que você pare de me reconhecer e que eu a perca, que eu a reperca por completo. Alguma coisa de maravilhoso acaba de começar, algo que pode preencher uma vida toda inteiramente, eu o digo com toda a sinceridade da minha alma, toda a seriedade e toda a gravidade de que eu sou capaz, isso desde oito dias, amanhã faz oito dias que eu senti minha vida radicalmente transformada e ontem foi a consagração material dessa transformação radical. Escreva-me, escreva-me uma carta humana, completa em que você me diga o preço que você estabelece para a nossa união, e as razões que você diria ter para desconfiar de mim sob uma certa forma. Quando lhe peço para me detalhar o preço da nossa união eu lhe convido a fazer viver imagens diante de mim, imagens em que eu sinta nossa própria vida. Depois de ontem tenho o gosto de uma boca de mulher que me persegue, mas como uma idéia, como uma essência. Este gosto não é mais uma coisa do corpo, ele me mostra, a nu, o sentido mesmo de uma alma, ele me diz um monte de coisas sobre toda uma vida secreta e que sem ele eu não conheceria. Tenho um nome que minha mãe me deu quando eu tinha quatro anos, de que os íntimos me chamavam: Nanaqui. Eis o que me descreve também na minha inocência e no mais puro de minha vida.
Nanaqui.
..
.
(Antonin ARTAUD, Oeuvres, France: Gallimard, 2004, p. 393-395, livre tradução)

2 comentários:

Guiga disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Guiga disse...

fernanda que bárbaro parece que vem lá do fundo do inconsciente