nesta cidade ainda não conheci outro lugar com o encanto perturbador do Cour de Rohan, onde volumes irregulares de pedras claras se ergueram do chão e foram cobertas por parreiras e outras trepadeiras que partem do chão e a ele retornam, terreno em que frutificam jardins verdes e também outras cores, diversas tonalidades, vermelho. as gramíneas tomaram e excederam as folgas entre os paralelepípedos, seus cabelinhos punks afofam o andar, perfumam o olhar. as imensas janelas parecem assim mais frescas e brilhantes, como os monumentos de afetação universal. na entrada há um portão, nem sempre aberto, em que se inscreve em signos enferrujados e persistentes, proprieté privé - que sem orgulho especial mas de muito bom grado costumo ultrapassar.
sábado, 2 de outubro de 2010
sexta-feira, 1 de outubro de 2010
domingo, 26 de setembro de 2010
"
A uma Razão
Um golpe do seu dedo sobre o tambor libera todos os sons e começa a nova harmonia.
Um passo seu é o levante dos novos homens e seu "em marcha".
A cabeça vira: o novo amor! A cabeça revira - o novo amor!
'Mude nossos quinhões, peneire os desastres, a começar pelo tempo', cantam pra você estas crianças. 'Apareça não importa onde a substância de nossas fortunas e de nossas vontades', pedem-lhe.
Chegada há muito tempo, para todos os lugares irá".
(Arthur RIMBAUD, Illuminations, Librairie Générale Française, 1998, p. 104, tradução livre)
A uma Razão
Um golpe do seu dedo sobre o tambor libera todos os sons e começa a nova harmonia.
Um passo seu é o levante dos novos homens e seu "em marcha".
A cabeça vira: o novo amor! A cabeça revira - o novo amor!
'Mude nossos quinhões, peneire os desastres, a começar pelo tempo', cantam pra você estas crianças. 'Apareça não importa onde a substância de nossas fortunas e de nossas vontades', pedem-lhe.
Chegada há muito tempo, para todos os lugares irá".
(Arthur RIMBAUD, Illuminations, Librairie Générale Française, 1998, p. 104, tradução livre)
O trabalho do pintor
Picasso, meu amigo demente
Meu sábio amigo fora das fronteiras
Não há ninguém sobre nossa terra
Que não seja mais puro que seu nome
Eu amo lhe dizer eu amo dizer
Que são assinados todos os seus gestos
Pois a partir daí os homens
À sua grandeza são justificados
E a grandeza deles é diferente
E a grandeza deles é tudo igual
Sobre o asfalto ela queda
Sobre seus desejos ela queda"
(Paul ÉLUARD, Poésie ininterrompue, France: Gallimard, 2001, p. 62-63, tradução livre) Texto escrito entre 1949 e 1953.
Para Picasso
(...)V
Picasso, meu amigo demente
Meu sábio amigo fora das fronteiras
Não há ninguém sobre nossa terra
Que não seja mais puro que seu nome
Eu amo lhe dizer eu amo dizer
Que são assinados todos os seus gestos
Pois a partir daí os homens
À sua grandeza são justificados
E a grandeza deles é diferente
E a grandeza deles é tudo igual
Sobre o asfalto ela queda
Sobre seus desejos ela queda"
(Paul ÉLUARD, Poésie ininterrompue, France: Gallimard, 2001, p. 62-63, tradução livre) Texto escrito entre 1949 e 1953.
terça-feira, 21 de setembro de 2010
terça-feira, 14 de setembro de 2010
domingo, 5 de setembro de 2010
nos anúncios de colocation as pessoas realmente procuram o ideal pra elas: "Colocatário ideal - homem, entre 25 e 30 anos, estudante, não-fumante, sem animais, solteiro e gay".
isso quando não é "Colocatário ideal - mulher, entre 16 e 99 anos, não importa, não fumante, sem animais, não importa, heterossexual (disponível para cuidar da minha filha de 4 anos)".
sábado, 4 de setembro de 2010
grande perigo na tarde do centro parisiense
Uma velhinha de parcos cabelos brancos que estava no bosque falava tracejado, que engraçado, porque além da idade ela possuía uma dentadura anti-francês. La pauvrrre! Deu três passos breves, seu sapato branco era redondo, mas muito pequeno, e tinha aspecto pesado. Amassou debilmente um pedaço de pão velho que estava num plástico transparente, jogou aos pombos e passarinhos. Após curto tempo mal podia andar, mas fez todo o esforço para sair do entorno sem ferir nenhum animal. Ela estava quase radiante e, de fato, muito satisfeita, avistou um banco de madeira assombreado à frente. Sentou-se como uma criança em uma cadeira de balanço. Com voz inaudível parecia conversar com duas ou três aves que se aproximaram mais dela. Expressava todo o carinho que cabia em sua boquinha torta. Ele passou, só deu pra notar os óculos escuros, a camisa verde e os chutes que destacaram todas aquelas penas no ar, o grunhido dos bichos. Me aliviou não ter havido nenhuma morte.
diálogo de domingo
era o quarto parque que a indígena conhecia que não tinha banheiro:
- aqui em paris é sempre bom levar papel quando a gente vai aos parques e bosques, né?, perguntou a indígena, querendo puxar papo.
- ah, sim. este é um país muito selvagem!, respondeu a francesa.
- aqui em paris é sempre bom levar papel quando a gente vai aos parques e bosques, né?, perguntou a indígena, querendo puxar papo.
- ah, sim. este é um país muito selvagem!, respondeu a francesa.
quarta-feira, 1 de setembro de 2010
terça-feira, 31 de agosto de 2010
O teatro alquímico [parte 1]
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Entre o princípio do teatro e o da alquimia há uma misteriosa identidade de essência. É que o teatro, como alquimia, é, quando considerado de seu princípio e subterraneamente, ligado a um certo número de bases, que são as mesmas em todas as artes, e que visam, no domínio espiritual e imaginário, uma eficácia análoga àquela que, no domínio psíquico, permite produzir realmente ouro. Mas há ainda entre o teatro e a alquimia uma semelhança maior, e que leva metafisicamente muito mais longe. É que a alquimia, como o teatro, são artes por assim dizer virtuais, que nelas mesmas não carregam mais seu fim que sua realidade em si próprias.
Lá onde a alquimia, por seus símbolos, é como o Duplo espiritual de uma operação que só tem eficácia sobre o plano da matéria real, também o teatro deve ser considerado como o Duplo - não desta realidade cotidiana e direta que pouco a pouco o reduz a não ser mias que cópia inerte, tão vã quanto edulcorada, mas de uma outra realidade perigosa e típica, dos Princípios, como dos golfinhos, quando eles mostram suas cabeças apressando-se para reentrar na obscuridade das águas.
Mas esta realidade não é humana, mas inumana, e o homem com seus modos ou com seu caráter conta com ela, é preciso dizê-lo, muito pouco (?: un fort peu). E do homem podia ficar quase só a cabeça e um tipo de cabeça absolutamente desnuda, maleável e orgânica, onde permanecia a matéria formal exatamente suficiente para que os princípios ali pudessem desdobrar suas consequências de uma maneira sensível e acabada.
(...)
Todos os verdadeiros alquimistas sabem que o símbolo alquímico é uma miragem como o teatro é uma miragem. E esta perpétua alusão às coisas e ao princípio do teatro que se encontra um pouco próximo aos livros alquímicos, deve ser compreendido como o sentimento (de que os alquimistas têm a mais extrema consciência) da identidade que existe entre o plano sobre o qual evoluem os personagens, os objetos, as imagens, e de uma maneira geral tudo o que constitui a realidade virtual do teatro, e o plano puramente suposto e ilusório sobre o qual evoluem os símbolos da alquimia.
(...)
Eu me explico. E talvez, de todo modo, já se tenha compreendido que o gênero de teatro ao qual fazemos alusão nada tem a ver com este tipo de teatro social ou de atualidade, que muda com as épocas, e em que as idéias que o animam na origem não se encontram mais que em caricaturas de gestos, mal conhecíveis em razão de terem mudado de sentido. Trata-se de idéias do teatro típico e primitivo, como de palavras, que, com o tempo, deixaram de fazer imagem, e que, ao invés de serem um meio de expansão, não são mais que um impasse e um cemitério para o espírito.
Talvez antes de ir além se nos demandaria definir o que entendemos por teatro típico e primitivo. E, por esse caminho, entraremos no coração mesmo do problema.
Se se coloca, com efeito, a questão das origens e da razão de ser (ou da necessidade primordial) do teatro, encontra-se, de um lado e metafisicamente, a materialização ou, melhor, a exteriorização de um tipo de drama essencial que conteria de uma maneira ao mesmo tempo múltipla e única os princípios essenciais de todo drama, já orientados eles mesmos e divididos, não o bastante para perderem o caráter de princípios, mas o bastante para conter de modo substancial e ativo, isto é, cheio de descargas, perspectivas infinitas de conflitos. Analisar filosoficamente um tal drama é impossível, e não é senão poeticamente e arrancando o que podem ter de comunicativo e de magnético aos princípios de todas as artes que se pode, por formas, por sons, músicas e volumes, evocar, passando através de todas as similitudes naturais das imagens e das semelhanças, não direções primordiais do espírito, que nosso intelectualismo lógico e abusivo reduziria a serem apenas inúteis esquemas, mas de tipos de estados de uma acuidade tão intensa, de um corte tão absoluto que se sintam através dos tremores da música e da forma as ameaças subterrâneas de um caos tão decisivo quanto perigoso.
..
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(Antonin ARTAUD, Oeuvres, France: Gallimard, 2004, p. 532-533)
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Entre o princípio do teatro e o da alquimia há uma misteriosa identidade de essência. É que o teatro, como alquimia, é, quando considerado de seu princípio e subterraneamente, ligado a um certo número de bases, que são as mesmas em todas as artes, e que visam, no domínio espiritual e imaginário, uma eficácia análoga àquela que, no domínio psíquico, permite produzir realmente ouro. Mas há ainda entre o teatro e a alquimia uma semelhança maior, e que leva metafisicamente muito mais longe. É que a alquimia, como o teatro, são artes por assim dizer virtuais, que nelas mesmas não carregam mais seu fim que sua realidade em si próprias.
Lá onde a alquimia, por seus símbolos, é como o Duplo espiritual de uma operação que só tem eficácia sobre o plano da matéria real, também o teatro deve ser considerado como o Duplo - não desta realidade cotidiana e direta que pouco a pouco o reduz a não ser mias que cópia inerte, tão vã quanto edulcorada, mas de uma outra realidade perigosa e típica, dos Princípios, como dos golfinhos, quando eles mostram suas cabeças apressando-se para reentrar na obscuridade das águas.
Mas esta realidade não é humana, mas inumana, e o homem com seus modos ou com seu caráter conta com ela, é preciso dizê-lo, muito pouco (?: un fort peu). E do homem podia ficar quase só a cabeça e um tipo de cabeça absolutamente desnuda, maleável e orgânica, onde permanecia a matéria formal exatamente suficiente para que os princípios ali pudessem desdobrar suas consequências de uma maneira sensível e acabada.
(...)
Todos os verdadeiros alquimistas sabem que o símbolo alquímico é uma miragem como o teatro é uma miragem. E esta perpétua alusão às coisas e ao princípio do teatro que se encontra um pouco próximo aos livros alquímicos, deve ser compreendido como o sentimento (de que os alquimistas têm a mais extrema consciência) da identidade que existe entre o plano sobre o qual evoluem os personagens, os objetos, as imagens, e de uma maneira geral tudo o que constitui a realidade virtual do teatro, e o plano puramente suposto e ilusório sobre o qual evoluem os símbolos da alquimia.
(...)
Eu me explico. E talvez, de todo modo, já se tenha compreendido que o gênero de teatro ao qual fazemos alusão nada tem a ver com este tipo de teatro social ou de atualidade, que muda com as épocas, e em que as idéias que o animam na origem não se encontram mais que em caricaturas de gestos, mal conhecíveis em razão de terem mudado de sentido. Trata-se de idéias do teatro típico e primitivo, como de palavras, que, com o tempo, deixaram de fazer imagem, e que, ao invés de serem um meio de expansão, não são mais que um impasse e um cemitério para o espírito.
Talvez antes de ir além se nos demandaria definir o que entendemos por teatro típico e primitivo. E, por esse caminho, entraremos no coração mesmo do problema.
Se se coloca, com efeito, a questão das origens e da razão de ser (ou da necessidade primordial) do teatro, encontra-se, de um lado e metafisicamente, a materialização ou, melhor, a exteriorização de um tipo de drama essencial que conteria de uma maneira ao mesmo tempo múltipla e única os princípios essenciais de todo drama, já orientados eles mesmos e divididos, não o bastante para perderem o caráter de princípios, mas o bastante para conter de modo substancial e ativo, isto é, cheio de descargas, perspectivas infinitas de conflitos. Analisar filosoficamente um tal drama é impossível, e não é senão poeticamente e arrancando o que podem ter de comunicativo e de magnético aos princípios de todas as artes que se pode, por formas, por sons, músicas e volumes, evocar, passando através de todas as similitudes naturais das imagens e das semelhanças, não direções primordiais do espírito, que nosso intelectualismo lógico e abusivo reduziria a serem apenas inúteis esquemas, mas de tipos de estados de uma acuidade tão intensa, de um corte tão absoluto que se sintam através dos tremores da música e da forma as ameaças subterrâneas de um caos tão decisivo quanto perigoso.
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(Antonin ARTAUD, Oeuvres, France: Gallimard, 2004, p. 532-533)
segunda-feira, 30 de agosto de 2010
A Anaïs Nin
[Paris, 18 de maio de 1933]
Eu trouxe muitas pessoas, homens e mulheres diante da maravilhosa lona, mas é a primeira vez que eu vi uma emoção artística tocar um ser e o fazer palpitar como o amor. Seus sentidos tremeram e eu me dei conta de que em você o corpo e o espírito estavam formidavelmente ligados, pois uma impressão espiritual pura podia desencadear no seu organismo uma tempestade muito poderosa. (...)
Sendo o que você é, você deve compreender a grande alegria dolorosa, e mesmo a estupefação que eu experimento ao reencontrá-la assim: de uma só vez vejo completada, exatamente, hermeticamente preenchida (em todos os sentidos) minha solidão sentimental infinita, e preenchida de uma maneira que me assusta (...) [a ponto de] me fazer crer que os milagres são desse mundo, se eu pensava que nem você nem eu somos absolutamente desse mundo, e é este encontro perfeito demais que me estupefata e me afeta como uma dor. (...)
Você já pôde ver que onde sobre certos pontos tenho intuições, tipos de revelações fulgurantes, sobre outros eu não sou senão obscuro e estúpida, as coisas mais simples que escapam e é preciso uma compreensão de uma sutileza rara para admitir, para aceitar essa mistura, quando os obscuros afetam os sentimentos que se tem o direito de esperar de mim. Várias coisas nos aproximam terrivelmente, mas uma sobretudo: nosso silêncio. Você tem o mesmo silêncio que eu. E você é a única pessoa diante da qual meu próprio silêncio não me é incômodo. Você tem um silêncio veemente no qual se diria que se sentem passar as essências, eu o sinto estranhamente vívido, como uma armadilha aberta sobre um abismo, onde se sentiria o murmúrio silencioso e secreto da terra. Não há poesia inútil e fabricada em tudo isso o que te conto, de todo modo, você o sente bem.
(...) mas mesmo que em alguns momentos eu seja cego, tenho medo que o destino também a cegue, que você perca bruscamente o contato com todas as suas descobertas, com esta vida que faz meu amaravilhamento, tenho medo, para dizer tudo, que seu corpo de uma vez a habitue e faça com que você não me reconheça mais, ou que em um desses períodos, em que eu me separe de mim, a decepção que você provará faça que você pare de me reconhecer e que eu a perca, que eu a reperca por completo. Alguma coisa de maravilhoso acaba de começar, algo que pode preencher uma vida toda inteiramente, eu o digo com toda a sinceridade da minha alma, toda a seriedade e toda a gravidade de que eu sou capaz, isso desde oito dias, amanhã faz oito dias que eu senti minha vida radicalmente transformada e ontem foi a consagração material dessa transformação radical. Escreva-me, escreva-me uma carta humana, completa em que você me diga o preço que você estabelece para a nossa união, e as razões que você diria ter para desconfiar de mim sob uma certa forma. Quando lhe peço para me detalhar o preço da nossa união eu lhe convido a fazer viver imagens diante de mim, imagens em que eu sinta nossa própria vida. Depois de ontem tenho o gosto de uma boca de mulher que me persegue, mas como uma idéia, como uma essência. Este gosto não é mais uma coisa do corpo, ele me mostra, a nu, o sentido mesmo de uma alma, ele me diz um monte de coisas sobre toda uma vida secreta e que sem ele eu não conheceria. Tenho um nome que minha mãe me deu quando eu tinha quatro anos, de que os íntimos me chamavam: Nanaqui. Eis o que me descreve também na minha inocência e no mais puro de minha vida.
Nanaqui.
..
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(Antonin ARTAUD, Oeuvres, France: Gallimard, 2004, p. 393-395, livre tradução)
sábado, 28 de agosto de 2010
me pergunto se a influência de uma língua em outra pode ultrapassar o aspecto lexical e alcançar o nervo sintático, gramatical. e se a organização dos significados se dá de modo diacrônico, uns em relação aos outros, qualquer modificação semântica, como uma folha que tomba leve sobre um lago calmo pode alterar o movimento ou não-movimento de tudo quanto estiver ali reciprocamente implicado, também revolve o plano significativo da linguagem. há de se conjugar a isso alguma compreensão, seja ela estruturalista, pós, anti, qual for enfim, sobre o efeito de perturbações estruturais de uma língua em outra no plano mais geral da linguagem? pode ser que a organização dessas estruturas ocorra de modo totalmente diferente, independente, sem a menor causalidade.
Aguardo você há 17 minutos, mon amour. Não sei por que, pressenti que isso fosse ocorrer. Nossa despedida apressada de ontem me deixou com uma impressão ruim. Ou talvez foi algo que fiz, será que o modo como disse que precisava ir, sem dar tempo pra você pensar em qualquer coisa? De repente, causei algum ciúme te dizendo que tinha que me desligar do chat porque a Marina acabara de acordar, já eram 2 da madrugada. Você pode ter pensado que a Marina podia acordar sozinha, sem alguém para ajudá-la, sem que alguém fosse cobri-la ou abraçá-la, por já estar bem grandinha. Mas ela ia embora, te disse que iria acompanhá-la com um certo ar de que isso seria sagrado, e era, e quem sabe naquele momento você tenha comparado a importância, para mim, da nossa conversa com a da despedida da Marina, sentido nosso contato inferior. Injustamente inferior, porque nós estávamos há milhas de distância, enquanto ela estava bem ali, do meu lado, estalando as madeiras do quarto ao se levantar demoradamente, por certo ainda tonta com nossa briga de ontem, com sono e com o vinho tinto que tomamos pra ver se assim conseguíamos falar com mais fluência a nossa língua materna. Eu precisava pelo menos acompanhá-la, minha querida, ainda que não me sentisse tendo que me redimir por nada, sobretudo porque não havia nenhuma outra razão que me levasse a isso. Era uma estratégia sem objetivo e sem pensamento, um carinho, como se diz. Injustamente, meu benzinho. Pedi para que nos reencontrássemos hoje. E não teria mais como reencontrar a Marina tão cedo. Você topou.
Você está atrasada mais de uma hora, quem sabe calculamos mal o fuso? Ou então, me pergunto desde nossa conversa de ontem se quando calculamos a diferença dos ponteiros de nossos relógios –havíamos nos encontrado apenas por acaso na internet, você deve se lembrar bem, eu fiquei eufórica quando me dei conta disso – você não estava em um computador ainda programado no horário de verão (ou de inverno, nunca sei que horas deveriam ser), essas lan-houses não ligam em atualizar os relógios das máquinas que suam e queimam todas as tardes ligadas nas tomadas quentes. Poxa, eu havia te falado que, me encontrando às 5 horas daqui, você deveria estar às 13h ou 14h daí, seria preciso calcular o fuso corretamente. Ah, mas você é tão teimosa! Por que você insiste em se deixar ser assim? É capaz que tenha pensado que só me encontraria às 14h de São Paulo, fosse que horário fosse em Paris. Devo te informar que isso seria às 19h daqui, que então eu deveria te esperar duas horas a mais, mas, enfim, não falta tanto para chegar lá. Já esperei uma hora e quarenta. Posso esperar mais vinte minutos. E, quem sabe, se você chegar um pouco atrasada quanto ao horário que você mesma estabeleceu, uns 15 ou 20 minutos a mais, bem, não haverá problema non plus, não vale a pena se estressar por conta de um atraso.
Você está atrasada mais de uma hora, quem sabe calculamos mal o fuso? Ou então, me pergunto desde nossa conversa de ontem se quando calculamos a diferença dos ponteiros de nossos relógios –havíamos nos encontrado apenas por acaso na internet, você deve se lembrar bem, eu fiquei eufórica quando me dei conta disso – você não estava em um computador ainda programado no horário de verão (ou de inverno, nunca sei que horas deveriam ser), essas lan-houses não ligam em atualizar os relógios das máquinas que suam e queimam todas as tardes ligadas nas tomadas quentes. Poxa, eu havia te falado que, me encontrando às 5 horas daqui, você deveria estar às 13h ou 14h daí, seria preciso calcular o fuso corretamente. Ah, mas você é tão teimosa! Por que você insiste em se deixar ser assim? É capaz que tenha pensado que só me encontraria às 14h de São Paulo, fosse que horário fosse em Paris. Devo te informar que isso seria às 19h daqui, que então eu deveria te esperar duas horas a mais, mas, enfim, não falta tanto para chegar lá. Já esperei uma hora e quarenta. Posso esperar mais vinte minutos. E, quem sabe, se você chegar um pouco atrasada quanto ao horário que você mesma estabeleceu, uns 15 ou 20 minutos a mais, bem, não haverá problema non plus, não vale a pena se estressar por conta de um atraso.
sexta-feira, 27 de agosto de 2010
tradução livre do poema da separação
Se séparer c’est avoir la maison envahie
vérifier les éléments de la salle, l’armoire,
le portefeuille, sans être sûr
de ce qui a été pris.
Regarder suspicieusement
les objets qui ont vu
et ne disent rien.
Se séparer c’est une porte
fracturée de l’intérieur
(Fabrício Carpinejar, "Cinco Marias", Bertrand Brasil, 2004)
vérifier les éléments de la salle, l’armoire,
le portefeuille, sans être sûr
de ce qui a été pris.
Regarder suspicieusement
les objets qui ont vu
et ne disent rien.
Se séparer c’est une porte
fracturée de l’intérieur
(Fabrício Carpinejar, "Cinco Marias", Bertrand Brasil, 2004)
partida
em maio passado comprei um livro. quando parti, coloquei-o no fundo da mala. te tomei algo, enfim.
quinta-feira, 26 de agosto de 2010
absence
a palavra vem do latim, dizem. na fase clássica da língua, o prefixo que indicava distância era ab. com a distância - da fase, em português foi virando au. sens até hoje indica sentimento, sensação, sentir. tudo isso é muito bonito, essa descrição tão ausente. mas não me peça pra explicar saudade.
terça-feira, 24 de agosto de 2010
vou parecer medíocre, mas quando saí da gare du nord e tive o primeiro contato com paris não vi nada de excepcional. minha amiga me perguntou, requerendo confirmação, se a cidade não era maravilhosa. mais por educação respondi o que ela queria ouvir, mas sem também ir além com aquilo. passei muito bêbada meu período de décolage, a inadaptação de fuso. só fui mudar o único relógio que tenho, o do meu computador, ontem à noite, quando me afastei mais da condição de estar em um tempo entrecortado. retomei o ar, respirei fundo e tentei estar presente aqui no presente, naquele que agora flagro já velho demais. senti um deslocamento maciço de instantes quando ontem um colega brasileiro comentou que a cidade era cinematográfica. como, às vezes, ele usa frases de efeito que não consegue explicar bem, pedi algum desbobramento e ele foi genial. "este prédio aqui [apontando para ele], não parece que foi planejado? que ele foi construído só para estar nesta rua dessa forma? e esta igreja, então? olha a angulação dela na rua! não é incrível? uma mão veio e a ajeitou aí". os exemplos foram perfeitos porque arbitrários, todos aqueles prédios estavam bem dispostos. e isso não queria dizer "perfeitamente alinhados", já que isso talvez implicasse uma pobreza estética. havia riqueza no encontro das linhas arquitetônicas dos diversos batîments, com árvores e as calçadas lisas e largas, com pouco pedestres e ciclistas, que formava um complexo de cantos e bordas a se perder de vista. cidade de detalhes, cada rua espelha um céu e o céu é lindo.
segunda-feira, 23 de agosto de 2010
sexta-feira, 20 de agosto de 2010
bobo quem não quer ser bonobo...
adoro o que a gente chama de mundo animal, porque ele passa tão alheio às nossas discussões sobre o que é natureza, o que é um comportamento natural ou desviante e sobre a suposta superioridade humana em relação a todos mais.
.
http://www1.folha.uol.com.br/ciencia/785884-golfinho-faz-sexo-gay-para-manter-amigo-veja-ranking-animal.shtml
adoro o que a gente chama de mundo animal, porque ele passa tão alheio às nossas discussões sobre o que é natureza, o que é um comportamento natural ou desviante e sobre a suposta superioridade humana em relação a todos mais.
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http://www1.folha.uol.com.br/ciencia/785884-golfinho-faz-sexo-gay-para-manter-amigo-veja-ranking-animal.shtml
quinta-feira, 19 de agosto de 2010
manha(ã) com minha vó
hoje acordei com a minha vó entrando em casa com uma bacia de mostardas mergulhadas n'água. "vim te ensinar a fazer arroz com mostarda". fui pegar o computador. ela assim: "deixa eu ver isso aí como é". foi a segunda vez que ela espiou a telinha, sentou ao meu lado no sofá. "quê que cê fez?". vó, entortei as letrinhas pra ficar mais bonitinho. nos intervalos da receita, a velhinha me cantou coisas da juventude, como moreira alves, dalva de oliveira e luiz vieira.
ARROZ COM MOSTARDA
relação entre os ingredientes:
* quase um maço de mostarda pra 1 xícara de arroz.
* pra 1 xícara de arroz, 2 xícaras de água
* sal, alho, óleo, tomate e cebola a gosto do freguês
ARROZ COM MOSTARDA
relação entre os ingredientes:
* quase um maço de mostarda pra 1 xícara de arroz.
* pra 1 xícara de arroz, 2 xícaras de água
* sal, alho, óleo, tomate e cebola a gosto do freguês
lavar a mostarda e rasgar as folhas com a mão, ou cortar com a faca em tirinhas. refogar (torrar) o arroz com sal e alho e óleo numa panela à parte. depois, colocar as folhas no arroz e mexer um pouco. se você gostar de cebola e tomate, adicionar agora. a seguir, jogar a água fervendo. logo que ferver, tampar a panela e baixar o fogo para o mínimo. pronto!
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ARROZ 'SEHRI (arroz com cabelo de anjo)
relação entre ingredientes:
* pra 1 xícara de arroz, pelo menos 8 ninhos de macarrão cabelo de anjo
* pra 1 xícara de arroz, 2 xícaras de água (no mínimo)
* sal e óleo (e, se preferir, margarina ou manteiga)
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colocar pra refogar os ninhos de macarrão amassados com a mão e o óleo (minha vó sugere colocar também um pouco de manteiga ou margarina pra dar um gostinho bom). "coloca assim: não deixa queimar". adicionar o arroz à panela pra ele torrar. por fim, adicionar a água fervente e o sal a gosto. e não esquecer de passar o fogo pro mínimo, né, fia?
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mostarda,
receita da vovó
segunda-feira, 16 de agosto de 2010
domingo, 15 de agosto de 2010
quinta-feira, 12 de agosto de 2010
“Se eu fosse aquele cara que se humilha no sinal/ por menos de um real, minha chance era pouca/ mas se eu fosse aquele moleque de touca/ que engatilha e enfia o cano dentro de sua boca/ de quebrada, sem roupa, você e sua mina/ um, dois, nem me viu! já sumi na neblina/ Mas não! permaneço vivo, eu sigo a mística/ 27 anos contrariando a estatística/Seu comercial de TV não me engana/ eu não preciso de status, nem fama/ Seu carro e sua grana já não me seduz/ e nem a sua puta de olhos azuis/ Eu sou apenas um rapaz latinoamericano/apoiado por mais de cinquenta mil manos/ efeito colteral que seu sistema produz...” (Capitulo 4, Versículo 3, Racionais).
"A frátria órfã" - artigo da Maria Rita Kehl, escrito em 2000, sobre os Racionais: http://mariaritakehl.psc.br/resultado.php?id=67
"A frátria órfã" - artigo da Maria Rita Kehl, escrito em 2000, sobre os Racionais: http://mariaritakehl.psc.br/resultado.php?id=67
Por que viver deprimido?
Depois de termos lido Maria Rita Kehl e depois de a termos ouvido falar ( ela nos brindou com uma bela exposição na noite de 26 de outubro em Fronteiras do Pensamento), vem-nos a vontade de conversar com ela por discorrer sobre coisas que nos interessam: depressão, tempo, vazio, medicamentos, droga...
Nem todos os conflitos originam-se da relação pai-mãe-filho. Ouça-se Deleuze! Pelo viés do Outro, Maria Rita ultrapassa o conflito familiar. No Outro cabe tudo o que está acima do outro (cada um de nós). O Outro abarca Deus, Deuses, Bem, Lei, Pai, Mãe, Mulher, Falo, Vazio, Opinião pública, o A-gente heideggeriano, Bullying, Velocidade, Riqueza... Houve época em que o Outro abarcava conceitos fixos, essências: Ser, Deus, Bem, Justiça, Amor, Lei... Porque tudo já estava feito, havia pouco a fazer. Ao longo dos séculos, o que era fixo se diluiu, o sólido virou líquido, a lei se converteu em princípios morais opressivos. O Outro (O Capital, por exemplo) nos faz exigências que nos deprimem. Se tempo é dinheiro, bom é aquilo que se pode comprar. Como as ofertas do mercado ultrapassam em muito nossa capacidade de consumir, caímos em depressão. Da depressão, recursos mágicos (dinheiro, medicamentos ou drogas) não nos redimem.
Maria Rita nos propõe outro caminho. Em lugar de nos orientarmos pelo princípio de que tempo é dinheiro, suponhamos que tempo seja a construção de nós mesmos. Se é assim, o vazio em nós, em torno de nós (outros), acima de nós (Outro) pode entristecer-nos, como pode chamar-nos a atuar. Quando? Quando não somos oprimidos pela necessidade (trabalhar para ganhar dinheiro), nem pela velocidade, nem por obrigações para ontem. O ócio, consumido pelo negócio, não é perda de tempo. Já dizia Drummond: “ganhei, perdi meu dia.” Dia perdido para o mundo dos negócios pode ser dia ganho para nós mesmos. Não delimitemos o dia da construção de nós mesmos ao nascer e ao desaparecer do sol, o dia de trabalho dedicado a nossa própria edificação dura a vida inteira.
O tempo de Maria Rita é agostiniano, o da espera ou bergsoniano, o da duração. Aqui entramos no território da ética. Viver eticamente não significa submeter-se a padrões impostos pela tradição. A tradição nos esmaga quando a arrastamos à maneira de um peso morto. Soa-nos aos ouvidos a palavra de Stephen Dedalus (um escritor inventado por James Joyce): “A história é um pesadelo do qual tento me libertar”. A história só não é pesadelo se a repensamos e a reinventamos. Se somos capazes de reconstruir, com fragmentos recolhidos de outros tempos, vivemos eticamente. Ética e poética se confundem. A poetização da existência começa na arquitetura da nossa vida, aliados a outros construtores.
Além do outro abre-se o espaço do Outro. O outro é limitado, o Outro é infinito. Se cruzamos os braços, o Outro nos esmaga. Se arregaçamos as mangas, o Outro nos oferece rotas imprevistas, múltiplas, ilimitadas. Os que vivem eticamente movem-se com os outros em direção ao Outro. Se não fizermos diferença entre os outros e o Outro, desaparecemos sufocados entre as quatro paredes a que nós próprios nos condenamos.
Se a distância que nos separa do Outro deprime, a depressão é o ponto de partida para grandes realizações. Em lugar da depressão, a arquitetura. Para os que vivem eticamente, a inutilidade é ganho. Inútil é a arte, o brinquedo, o canto, a dança, o escrever, o falar. No saber aproveitar a riqueza do inútil cotidiano reside o saber viver.
Um homem que soube viver eticamente foi Machado de Assis, pessoa de parcos recursos que poderia ter morrido no sem-sabor do emprego público. Revisitemos as últimas palavras de Brás Cubas, o das Memórias Póstumas. Declara a personagem que, por não ter tido filhos, não deixou a ninguém o legado de suas misérias. Brás Cubas, em lugar de entregar-se aniquilado a uma morte anônima, dedica as Memórias ao primeiro verme que devorou sua carne. É o triunfo da palavra, da arte, da invenção sobre a extinção. O mesmo Machado escreve o Instinto de Nacionalidade, ensaio memorável em que o ficcionista propõe que troquemos modelos do passado pela construção do futuro. Mais Machado e menos Prozac, além de outras descobertas maravilhosas como Zoloft, Cipramil e Luvox, medicamentos seguros, capazes de produzir relaxamento em pessoas sem patologia, deixando-nos despreocupados, tranqüilos, sem irritação, sem stress, felizes, massificados, inúteis."
(artigo de Donaldo Schüler sobre o livro O tempo e o Cão, escrito por Maria Rita Khel)
Depois de termos lido Maria Rita Kehl e depois de a termos ouvido falar ( ela nos brindou com uma bela exposição na noite de 26 de outubro em Fronteiras do Pensamento), vem-nos a vontade de conversar com ela por discorrer sobre coisas que nos interessam: depressão, tempo, vazio, medicamentos, droga...
Nem todos os conflitos originam-se da relação pai-mãe-filho. Ouça-se Deleuze! Pelo viés do Outro, Maria Rita ultrapassa o conflito familiar. No Outro cabe tudo o que está acima do outro (cada um de nós). O Outro abarca Deus, Deuses, Bem, Lei, Pai, Mãe, Mulher, Falo, Vazio, Opinião pública, o A-gente heideggeriano, Bullying, Velocidade, Riqueza... Houve época em que o Outro abarcava conceitos fixos, essências: Ser, Deus, Bem, Justiça, Amor, Lei... Porque tudo já estava feito, havia pouco a fazer. Ao longo dos séculos, o que era fixo se diluiu, o sólido virou líquido, a lei se converteu em princípios morais opressivos. O Outro (O Capital, por exemplo) nos faz exigências que nos deprimem. Se tempo é dinheiro, bom é aquilo que se pode comprar. Como as ofertas do mercado ultrapassam em muito nossa capacidade de consumir, caímos em depressão. Da depressão, recursos mágicos (dinheiro, medicamentos ou drogas) não nos redimem.
Maria Rita nos propõe outro caminho. Em lugar de nos orientarmos pelo princípio de que tempo é dinheiro, suponhamos que tempo seja a construção de nós mesmos. Se é assim, o vazio em nós, em torno de nós (outros), acima de nós (Outro) pode entristecer-nos, como pode chamar-nos a atuar. Quando? Quando não somos oprimidos pela necessidade (trabalhar para ganhar dinheiro), nem pela velocidade, nem por obrigações para ontem. O ócio, consumido pelo negócio, não é perda de tempo. Já dizia Drummond: “ganhei, perdi meu dia.” Dia perdido para o mundo dos negócios pode ser dia ganho para nós mesmos. Não delimitemos o dia da construção de nós mesmos ao nascer e ao desaparecer do sol, o dia de trabalho dedicado a nossa própria edificação dura a vida inteira.
O tempo de Maria Rita é agostiniano, o da espera ou bergsoniano, o da duração. Aqui entramos no território da ética. Viver eticamente não significa submeter-se a padrões impostos pela tradição. A tradição nos esmaga quando a arrastamos à maneira de um peso morto. Soa-nos aos ouvidos a palavra de Stephen Dedalus (um escritor inventado por James Joyce): “A história é um pesadelo do qual tento me libertar”. A história só não é pesadelo se a repensamos e a reinventamos. Se somos capazes de reconstruir, com fragmentos recolhidos de outros tempos, vivemos eticamente. Ética e poética se confundem. A poetização da existência começa na arquitetura da nossa vida, aliados a outros construtores.
Além do outro abre-se o espaço do Outro. O outro é limitado, o Outro é infinito. Se cruzamos os braços, o Outro nos esmaga. Se arregaçamos as mangas, o Outro nos oferece rotas imprevistas, múltiplas, ilimitadas. Os que vivem eticamente movem-se com os outros em direção ao Outro. Se não fizermos diferença entre os outros e o Outro, desaparecemos sufocados entre as quatro paredes a que nós próprios nos condenamos.
Se a distância que nos separa do Outro deprime, a depressão é o ponto de partida para grandes realizações. Em lugar da depressão, a arquitetura. Para os que vivem eticamente, a inutilidade é ganho. Inútil é a arte, o brinquedo, o canto, a dança, o escrever, o falar. No saber aproveitar a riqueza do inútil cotidiano reside o saber viver.
Um homem que soube viver eticamente foi Machado de Assis, pessoa de parcos recursos que poderia ter morrido no sem-sabor do emprego público. Revisitemos as últimas palavras de Brás Cubas, o das Memórias Póstumas. Declara a personagem que, por não ter tido filhos, não deixou a ninguém o legado de suas misérias. Brás Cubas, em lugar de entregar-se aniquilado a uma morte anônima, dedica as Memórias ao primeiro verme que devorou sua carne. É o triunfo da palavra, da arte, da invenção sobre a extinção. O mesmo Machado escreve o Instinto de Nacionalidade, ensaio memorável em que o ficcionista propõe que troquemos modelos do passado pela construção do futuro. Mais Machado e menos Prozac, além de outras descobertas maravilhosas como Zoloft, Cipramil e Luvox, medicamentos seguros, capazes de produzir relaxamento em pessoas sem patologia, deixando-nos despreocupados, tranqüilos, sem irritação, sem stress, felizes, massificados, inúteis."
(artigo de Donaldo Schüler sobre o livro O tempo e o Cão, escrito por Maria Rita Khel)
quarta-feira, 11 de agosto de 2010
ontem estava no banheiro da facu e matutei um bocado sobre a disposição das coisas dentro da cabina. o que mais incomodou foi a descarga. centralizada, encaixada na parede para ralar no meio das costas da menina que se masturbasse no troninho contorcendo-se um pouquinho de prazer - não precisava ser muito. acontece que aquela localização supostamente anti-masturbatória era uma delícia (eis o argumento técnico deste post). afinal, não iria bater uma sentada, quase deitada no encosto da privada, com a cabeça na parede, gemendo baixinho pro comedor que atracasse sobre mim. me levantaria pra bater uma bem longa, bem devagar, as pernas bambas, pensando: chupa aqui, vai, viadinho, bem gostoso, vai, seu puto, engole minha porra.
segunda-feira, 9 de agosto de 2010
o duvidoso pelo certo
não acredito na esquerda nacionalista. mas não é somente por conta das (já suficientes) questões referentes ao nacionalismo em si mesmo, enquanto ideologia. penso que essa opção configure um equívoco nos dias atuais, considerando-a em termos os mais pragmáticos. enquanto se defende a ampliação ou a manutenção de direitos nacionais, por exemplo trabalhistas, perde-se de vista que o ataque - no fundo, inclusive interno - a eles vem de fora, ao menos em sua parte mais insuperável. e a causa desse movimento se mostra um tanto patente. em um mercado internacional, os produtos de países com menos direitos sociais tendem a apresentar vantagens competitivas quase indiscutíveis, no plano econômico, comparativamente aos de estados garantistas. uma camiseta no brasil não pode ter um preço semelhante a uma da china, porque aqui xs manufatureirxs, se legalizadxs, geram uma série de 'custos' de produção, frutos do pagamento de prerrogativas de trabalho, previdência social, segurança na fábrica, altos impostos (em tese justificados pois revertidos a políticas públicas também sociais-assistenciais)...
ora, se no jogo do mercado capitalista de hoje os países com direitos humanos menos assegurados são os mais competitivos, disso evidentemente resulta um tipo de pressão nos mais protetivos no sentido de que aumentem sua competitividade passando pela desregulamentação de direitos essenciais conquistados com muito custo (custos de outro tipo!). daí as idéias de "flexibilizar" os direitos trabalhistas brasileiros, ilustrativamente. as empresas não suportariam competir com as chinesas, tailandesas e mexicanas, que não pagariam tantos impostos e direitos em seus países, o que permitiria que seus produtos chegassem até o brasil a preços mais baixos que aqueles produzidos aqui.
a luta interna no brasil não pode evitar o movimento geral que tende a fazer com que os países com menos direitos humanos puxem, por meio do mercado capitalista, os países mais garantistas para o mesmo patamar de desproteção em que os primeiros se encontram. isso não quer dizer que se deva desistir da resistência doméstica. mas que cumpre à esquerda se esmeirar em uma luta global, por direitos internacionais. apenas alçando os direitos humanos a um nível de fato universal se evitará que o capitalismo continue funcionando, sem dificuldades, como um buraco negro que arrasta consigo, em poucos anos, em planilhas contábeis, conquistas de décadas e séculos. a esquerda nacionalista certamente não conseguirá resolver esses problemas. uma internacionalista, quem sabe?
Paris, de Santos Dumont aos travestis
(Moacyr Luz / Aldir Branco)
Paris,
Uma loura envolta em négligée
Ton-sur-ton e degradé
O meu francês é meio assim
Jabaculê
E esse impasse:
Me mudar da vila pra Montparnasse
Eu sei que o tempo urge
Do verde-amarelo pro bleu-blanc-rouge
Da Conde Bonfan pro Moulin Rouge
Très bien, que beleza:
Ver o pandeiro tocar a Marselhesa
Pra cada merci beaucoup
Eu mando um n'a pas de quoi
E le samba, voilà!
Com mon amour eu vou derreter
(Dieu!)
E qu'est ce que c'est que vous voulez
Si la question é remexer?
Paris, je t'aime!
Eu vou voar pra ver
***
detalhe: que título é esse?!
(Moacyr Luz / Aldir Branco)
Paris,
Uma loura envolta em négligée
Ton-sur-ton e degradé
O meu francês é meio assim
Jabaculê
E esse impasse:
Me mudar da vila pra Montparnasse
Eu sei que o tempo urge
Do verde-amarelo pro bleu-blanc-rouge
Da Conde Bonfan pro Moulin Rouge
Très bien, que beleza:
Ver o pandeiro tocar a Marselhesa
Pra cada merci beaucoup
Eu mando um n'a pas de quoi
E le samba, voilà!
Com mon amour eu vou derreter
(Dieu!)
E qu'est ce que c'est que vous voulez
Si la question é remexer?
Paris, je t'aime!
Eu vou voar pra ver
***
detalhe: que título é esse?!
domingo, 8 de agosto de 2010
quarta-feira, 4 de agosto de 2010
filosofia do samba
Acreditei na paixão
E a paixão me mostrou
Que eu não tinha razão
Acreditei na razão
E a razão se mostrou
Uma grande ilusão
Acreditei no destino
E deixei-me levar
E no fim
Tudo é sonho perdido
Só desatino, dores demais
Hoje com meus desenganos
Me ponho a pensar
Que na vida, paixão e razão,
Ambas têm seu lugar
E por isso eu lhe digo
Que não é preciso
Buscar solução para a vida
Ela não é uma equação
Não tem que ser resolvida
A vida, portanto, meu caro,
Não tem solução
solução de vida (molejo dialético)
(paulinho da viola / ferreira gullar)
E a paixão me mostrou
Que eu não tinha razão
Acreditei na razão
E a razão se mostrou
Uma grande ilusão
Acreditei no destino
E deixei-me levar
E no fim
Tudo é sonho perdido
Só desatino, dores demais
Hoje com meus desenganos
Me ponho a pensar
Que na vida, paixão e razão,
Ambas têm seu lugar
E por isso eu lhe digo
Que não é preciso
Buscar solução para a vida
Ela não é uma equação
Não tem que ser resolvida
A vida, portanto, meu caro,
Não tem solução
solução de vida (molejo dialético)
(paulinho da viola / ferreira gullar)
segunda-feira, 2 de agosto de 2010
quinta-feira, 29 de julho de 2010
sobre os dizeres
Não se trata de dizer:
“O outro é tão verdadeiro quanto eu”.
Ou:
“A verdade outra é tão verdade quanto a verdade mesma”.
Ou:
“Eu sou outro, eu é outro”.
Talvez seja:
“É possível passível que as diversas verdades sejam verdadeiras,
mas enquanto se discute vamos postular o mínimo: eu e outro somos dança tímida.”
(rodrigo "lobão" - http://desatinosantropologicos.wordpress.com/2009/11/26/sobre-os-dizeres/)
Não se trata de dizer:
“O outro é tão verdadeiro quanto eu”.
Ou:
“A verdade outra é tão verdade quanto a verdade mesma”.
Ou:
“Eu sou outro, eu é outro”.
Talvez seja:
“É possível passível que as diversas verdades sejam verdadeiras,
mas enquanto se discute vamos postular o mínimo: eu e outro somos dança tímida.”
(rodrigo "lobão" - http://desatinosantropologicos.wordpress.com/2009/11/26/sobre-os-dizeres/)
segunda-feira, 26 de julho de 2010
MULHER, MULHERES
A filosofia como vocação para a liberdade
No dia 20 de junho de 2003, Marilena Chauí recebeu o título de Doutor Honoris Causa em Filosofia, concedido pela Universidade Paris VIII. Em razão desse fato, ela foi homenageada na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, quando proferiu um discurso com o título acima, de que publicarei três partes.
"(...)
Sei que nos dias que correm a filosofia é considerada uma profissão entre outras.
Com freqüência, tenho me perguntado por que me dediquei à filosofia.
Algumas vezes, julgo que ela me chamava desde o final de minha infância, de que tenho quatro recordações muito vívidas. A primeira delas é a de abrir um livro de minha mãe sobre filosofia da educação e em cujo primeiro capítulo – cujo conteúdo esqueci inteiramente – descobri duas palavras cujo sentido não compreendi, mas que ficaram em minha mente anos a fio: Sócrates e maiêutica. Somente na adolescência, durante o ciclo colegial, quando o professor João Villalobos ministrou um curso de lógica, aprendi o que significavam essas palavras, que volta e meia eu pronunciava pelo prazer de seu som. A segunda lembrança é a de abrir um livro de meu pai sobre introdução à psicanálise e descobrir que havia algo chamado inconsciente e um fato espantoso, chamado complexo de Édipo. Evidentemente, nada entendia sobre psicanálise, mas fiquei fascinada com o escândalo do que li. Lembro-me de haver tentado explicar o inconsciente e o complexo de Édipo a minha amigas do colégio das freiras e de vê-las horrorizadas, dizendo-me que eu deveria ir imediatamente me confessar e comungar para me livrar do horrível pecado contido em tais pensamentos. Mas não me confessei. Estava encantada demais com a descoberta para renunciar a ela. A terceira lembrança situa-se por volta de meus onze anos, quando li o primeiro romance. Era Quo Vadis. Li, reli, tresli, sabia de cor algumas passagens e particularmente o início, que me intrigara. De fato, logo nas primeiras linhas, é narrado que Petrônio estivera num festim no palácio de Nero e ali discutira com Lucano e Sêneca sobre a existência ou não da alma nas mulheres. E toda vez eu me perguntava como era possível alguém fazer essa pergunta, pois era evidente que as mulheres possuem alma. Na época, eu não sabia que devia essa certeza ao cristianismo, mas também não sabia que a simples admissão de alma nas mulheres não lhes havia adiantado muito. A quarta lembrança está em ter aberto um outro livro da estante de meu pai, intitulado Socialismo utópico e socialismo científico. Agora, algo decisivo me aparecia, mesmo que eu não tivesse compreendido quase nada do que lia. Aparecia-me com clareza que a luta pela justiça, pela igualdade e pela liberdade não era uma luta moral, nascida do espírito da caridade, mas uma ação política consciente determinada pela própria história. Era possível uma sociedade nova, justa e igualitária não simplesmente por causa de nossa indignação diante da injustiça e da desigualdade, mas porque era possível compreender suas causas e destruí-las.
Outras vezes, porém, penso que o entusiasmo pela filosofia nasceu das aulas de João Villalobos, que ministrou a uma classe de adolescentes de dezesseis anos um curso de lógica, em cuja primeira aula, sem qualquer aviso prévio, expôs o conflito entre Parmênides e Heráclito e, na segunda, a diferença entre a argumentação de Zenão e a de Górgias. Fiquei boquiaberta (e deslumbrada) com o fato de que o pensamento era capaz de pensar sobre si mesmo, que a linguagem podia falar de si mesma, que perceber e conhecer poderiam não ser o mesmo. O mundo se tornava, ao mesmo tempo, estranho, paradoxal e espantoso e a descoberta da racionalidade como problema parecia abrir um universo ilimitado no espaço e no tempo.
Outras vezes, porém, penso que fui para a filosofia quando, no final da adolescência, não podia tolerar a cultura da culpa em que fomos criados e sentia que era preciso encontrar uma outra ética em que a liberdade e a felicidade pudessem identificar-se – essa procura iria conduzir-me a Espinosa.
Talvez por causa dessas lembranças não posso considerar a filosofia uma profissão entre outras. Penso que quem busca a filosofia como forma de expressão de seu pensamento, de seus sentimentos, de seus desejos e de suas ações, decidiu-se por um modo de vida, um certo modo de interrogação e uma certa relação com a verdade, a liberdade, a justiça e a felicidade. É uma decisão existencial, como nos aparece com tanta clareza nas primeiras linhas do Tratado da emenda do intelecto, de Espinosa. Essa decisão intelectual, penso, não é possível a menos que aceitemos aquilo que Merleau-Ponty chamou de "nossa vida meditante" em busca de uma razão alargada, capaz de acolher o que a excede, o que está abaixo e acima dela própria. Essa decisão, penso também, não é possível se não admitirmos com Espinosa que pensar é a virtude própria da alma, sua excelência.
O desejo de viver uma existência filosófica significa admitir que as questões são interiores à nossa vida e à nossa história e que elas tecem nosso pensamento e nossa ação. Significa também uma relação com o outro na forma do diálogo e, portanto, como encontro generoso, mas também como combate sem trégua. Encontro generoso porque, como nos diz Merleau-Ponty, no diálogo somos libertados de nós mesmos, descobrimos nossas palavras e nossas idéias graças à palavra e ao pensamento de outrem que não nos ameaça e sim nos leva para longe de nós mesmos para que possamos retornar a nós mesmos. Mas também combate sem trégua, porque, como explica Espinosa, embora nada seja mais alegre e potente do que a amizade e a concórdia, os seres humanos são mutáveis, somos passionais e naturalmente inimigos, excitamos discórdias e sedições sob a aparência de justiça e de eqüidade. Por isso, diz ele, precisamos evitar os favores que nos escravizarão a um outro e somente os que são livres podem ser gratos uns aos outros, experimentando em sua companhia o aumento de sua força de alma, isto é, a generosidade e a liberdade.
(...)"
A filosofia como vocação para a liberdade
No dia 20 de junho de 2003, Marilena Chauí recebeu o título de Doutor Honoris Causa em Filosofia, concedido pela Universidade Paris VIII. Em razão desse fato, ela foi homenageada na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, quando proferiu um discurso com o título acima, de que publicarei três partes.
"(...)
Sei que nos dias que correm a filosofia é considerada uma profissão entre outras.
Com freqüência, tenho me perguntado por que me dediquei à filosofia.
Algumas vezes, julgo que ela me chamava desde o final de minha infância, de que tenho quatro recordações muito vívidas. A primeira delas é a de abrir um livro de minha mãe sobre filosofia da educação e em cujo primeiro capítulo – cujo conteúdo esqueci inteiramente – descobri duas palavras cujo sentido não compreendi, mas que ficaram em minha mente anos a fio: Sócrates e maiêutica. Somente na adolescência, durante o ciclo colegial, quando o professor João Villalobos ministrou um curso de lógica, aprendi o que significavam essas palavras, que volta e meia eu pronunciava pelo prazer de seu som. A segunda lembrança é a de abrir um livro de meu pai sobre introdução à psicanálise e descobrir que havia algo chamado inconsciente e um fato espantoso, chamado complexo de Édipo. Evidentemente, nada entendia sobre psicanálise, mas fiquei fascinada com o escândalo do que li. Lembro-me de haver tentado explicar o inconsciente e o complexo de Édipo a minha amigas do colégio das freiras e de vê-las horrorizadas, dizendo-me que eu deveria ir imediatamente me confessar e comungar para me livrar do horrível pecado contido em tais pensamentos. Mas não me confessei. Estava encantada demais com a descoberta para renunciar a ela. A terceira lembrança situa-se por volta de meus onze anos, quando li o primeiro romance. Era Quo Vadis. Li, reli, tresli, sabia de cor algumas passagens e particularmente o início, que me intrigara. De fato, logo nas primeiras linhas, é narrado que Petrônio estivera num festim no palácio de Nero e ali discutira com Lucano e Sêneca sobre a existência ou não da alma nas mulheres. E toda vez eu me perguntava como era possível alguém fazer essa pergunta, pois era evidente que as mulheres possuem alma. Na época, eu não sabia que devia essa certeza ao cristianismo, mas também não sabia que a simples admissão de alma nas mulheres não lhes havia adiantado muito. A quarta lembrança está em ter aberto um outro livro da estante de meu pai, intitulado Socialismo utópico e socialismo científico. Agora, algo decisivo me aparecia, mesmo que eu não tivesse compreendido quase nada do que lia. Aparecia-me com clareza que a luta pela justiça, pela igualdade e pela liberdade não era uma luta moral, nascida do espírito da caridade, mas uma ação política consciente determinada pela própria história. Era possível uma sociedade nova, justa e igualitária não simplesmente por causa de nossa indignação diante da injustiça e da desigualdade, mas porque era possível compreender suas causas e destruí-las.
Outras vezes, porém, penso que o entusiasmo pela filosofia nasceu das aulas de João Villalobos, que ministrou a uma classe de adolescentes de dezesseis anos um curso de lógica, em cuja primeira aula, sem qualquer aviso prévio, expôs o conflito entre Parmênides e Heráclito e, na segunda, a diferença entre a argumentação de Zenão e a de Górgias. Fiquei boquiaberta (e deslumbrada) com o fato de que o pensamento era capaz de pensar sobre si mesmo, que a linguagem podia falar de si mesma, que perceber e conhecer poderiam não ser o mesmo. O mundo se tornava, ao mesmo tempo, estranho, paradoxal e espantoso e a descoberta da racionalidade como problema parecia abrir um universo ilimitado no espaço e no tempo.
Outras vezes, porém, penso que fui para a filosofia quando, no final da adolescência, não podia tolerar a cultura da culpa em que fomos criados e sentia que era preciso encontrar uma outra ética em que a liberdade e a felicidade pudessem identificar-se – essa procura iria conduzir-me a Espinosa.
Talvez por causa dessas lembranças não posso considerar a filosofia uma profissão entre outras. Penso que quem busca a filosofia como forma de expressão de seu pensamento, de seus sentimentos, de seus desejos e de suas ações, decidiu-se por um modo de vida, um certo modo de interrogação e uma certa relação com a verdade, a liberdade, a justiça e a felicidade. É uma decisão existencial, como nos aparece com tanta clareza nas primeiras linhas do Tratado da emenda do intelecto, de Espinosa. Essa decisão intelectual, penso, não é possível a menos que aceitemos aquilo que Merleau-Ponty chamou de "nossa vida meditante" em busca de uma razão alargada, capaz de acolher o que a excede, o que está abaixo e acima dela própria. Essa decisão, penso também, não é possível se não admitirmos com Espinosa que pensar é a virtude própria da alma, sua excelência.
O desejo de viver uma existência filosófica significa admitir que as questões são interiores à nossa vida e à nossa história e que elas tecem nosso pensamento e nossa ação. Significa também uma relação com o outro na forma do diálogo e, portanto, como encontro generoso, mas também como combate sem trégua. Encontro generoso porque, como nos diz Merleau-Ponty, no diálogo somos libertados de nós mesmos, descobrimos nossas palavras e nossas idéias graças à palavra e ao pensamento de outrem que não nos ameaça e sim nos leva para longe de nós mesmos para que possamos retornar a nós mesmos. Mas também combate sem trégua, porque, como explica Espinosa, embora nada seja mais alegre e potente do que a amizade e a concórdia, os seres humanos são mutáveis, somos passionais e naturalmente inimigos, excitamos discórdias e sedições sob a aparência de justiça e de eqüidade. Por isso, diz ele, precisamos evitar os favores que nos escravizarão a um outro e somente os que são livres podem ser gratos uns aos outros, experimentando em sua companhia o aumento de sua força de alma, isto é, a generosidade e a liberdade.
(...)"
Discurso Marilena Chauí (segunda parte)
"(...)
A decisão filosófica guiou-me também, desde os anos de 1970, na luta contra a destruição da universidade pública e laica, destruição realizada sob várias formas pelo Estado brasileiro, sob os efeitos da sociedade administrada. O primeiro momento da destruição, ainda sob a ditadura, deu-se com a imposição da "universidade funcional", oferecida às classes médias para compensá-las pelo apoio à ditadura, oferecendo-lhes a esperança de rápida ascensão social por meio dos diplomas universitários. Foi a universidade da massificação e do adestramento rápido de quadros para o mercado das empresas privadas instaladas com o "milagre econômico". A partir dos anos de 1990, sob os efeitos do neoliberalismo, deu-se a nova fase destrutiva com a implantação da "universidade operacional", isto é, o desaparecimento da universidade como instituição social destinada à formação e à pesquisa, surgindo em seu lugar uma organização social duplamente privatizada: de um lado, porque a serviço das empresas privadas é guiada pela lógica do mercado; de outro, porque seu modelo é a empresa privada, levando-a a viver uma vida puramente endógena, voltada para si mesma como aparelho burocrático de gestão, fragmentada internamente e fragmentando a docência e a pesquisa. Essa universidade introduziu a idéia fantasmagórica de "produtividade acadêmica", avaliada segundo critérios quantitativos e das necessidades do mercado. Essa imagem da produção universitária tem sido uma das causas de sua degradação interna e de sua desmoralização externa, pois é uma universidade que despreza o pensamento e o ensino.
Nessa luta contra a degradação e a desmoralização da universidade, uma idéia da docência tem sido inspiradora para mim. Ela me foi dada por meu mestre Bento Prado. Com ele, descobri que o ensino é formador quando não é transmissão de um saber do qual nós seríamos senhores, nem é uma relação entre aquele que sabe com aquele que não sabe, mas uma relação assimétrica entre aquele cuja tarefa é manter vazio o lugar do saber e aquele cujo desejo é o de buscar esse lugar. Com Bento Prado aprendi o sentido de uma existência filosófica docente formadora, pois com ele aprendi que há ensino filosófico quando o professor não se interpõe entre o estudante e o saber e quando o estudante se torna capaz de uma busca tal que, ao seu término, ele também queira que o lugar do saber permaneça vazio. Há ensino filosófico quando o estudante também se tornou professor porque o professor não é senão o signo de uma busca infinita, aberta a todos. Em outras palavras, com mestre Bento Prado descobri o sentido da liberdade que preside ensinar e aprender.
Há pouco, disse que o desejo de viver uma vida filosófica significa admitir que as questões são interiores à nossa vida e à nossa história. É preciso, agora, acrescentar que as questões são apenas índices ou signos da indeterminação essencial de nossa experiência e que acedemos a uma vida filosófica quando essa indeterminação, por mais apavorante que seja, nos fascina e nos arranca de nós mesmos. Assim, quando falo em vida filosófica, penso nas palavras extraordinárias escritas por Merleau-Ponty no dia em que foi recebido no Collège de France, que me permito reproduzir aqui, citando o Elogio da Filosofia:
""A filosofia e o ser absoluto não estão acima dos erros rivais que se opõem no século; esses erros não são erros da mesma maneira e a filosofia, que é a verdade integral, tem a tarefa de dizer o que pode integrar de cada um deles [...]. O absoluto filosófico não tem sede em parte alguma, nunca está alhures, mas é para ser defendido em cada acontecimento [...]. Ao final de uma reflexão que, de início, o afasta, mas para melhor fazê-lo experimentar os laços de verdade que o prendem ao mundo e à história, o filósofo encontra, não o abismo do si ou do saber absoluto, mas a imagem renovada do mundo e dele próprio plantado nela, no meio dos outros [...]. O filósofo é o homem que desperta e fala, e o homem contém silenciosamente os paradoxos da filosofia, porque para ser inteiramente homem, é preciso ser um pouco e pouco menos homem"".
(...)"
A decisão filosófica guiou-me também, desde os anos de 1970, na luta contra a destruição da universidade pública e laica, destruição realizada sob várias formas pelo Estado brasileiro, sob os efeitos da sociedade administrada. O primeiro momento da destruição, ainda sob a ditadura, deu-se com a imposição da "universidade funcional", oferecida às classes médias para compensá-las pelo apoio à ditadura, oferecendo-lhes a esperança de rápida ascensão social por meio dos diplomas universitários. Foi a universidade da massificação e do adestramento rápido de quadros para o mercado das empresas privadas instaladas com o "milagre econômico". A partir dos anos de 1990, sob os efeitos do neoliberalismo, deu-se a nova fase destrutiva com a implantação da "universidade operacional", isto é, o desaparecimento da universidade como instituição social destinada à formação e à pesquisa, surgindo em seu lugar uma organização social duplamente privatizada: de um lado, porque a serviço das empresas privadas é guiada pela lógica do mercado; de outro, porque seu modelo é a empresa privada, levando-a a viver uma vida puramente endógena, voltada para si mesma como aparelho burocrático de gestão, fragmentada internamente e fragmentando a docência e a pesquisa. Essa universidade introduziu a idéia fantasmagórica de "produtividade acadêmica", avaliada segundo critérios quantitativos e das necessidades do mercado. Essa imagem da produção universitária tem sido uma das causas de sua degradação interna e de sua desmoralização externa, pois é uma universidade que despreza o pensamento e o ensino.
Nessa luta contra a degradação e a desmoralização da universidade, uma idéia da docência tem sido inspiradora para mim. Ela me foi dada por meu mestre Bento Prado. Com ele, descobri que o ensino é formador quando não é transmissão de um saber do qual nós seríamos senhores, nem é uma relação entre aquele que sabe com aquele que não sabe, mas uma relação assimétrica entre aquele cuja tarefa é manter vazio o lugar do saber e aquele cujo desejo é o de buscar esse lugar. Com Bento Prado aprendi o sentido de uma existência filosófica docente formadora, pois com ele aprendi que há ensino filosófico quando o professor não se interpõe entre o estudante e o saber e quando o estudante se torna capaz de uma busca tal que, ao seu término, ele também queira que o lugar do saber permaneça vazio. Há ensino filosófico quando o estudante também se tornou professor porque o professor não é senão o signo de uma busca infinita, aberta a todos. Em outras palavras, com mestre Bento Prado descobri o sentido da liberdade que preside ensinar e aprender.
Há pouco, disse que o desejo de viver uma vida filosófica significa admitir que as questões são interiores à nossa vida e à nossa história. É preciso, agora, acrescentar que as questões são apenas índices ou signos da indeterminação essencial de nossa experiência e que acedemos a uma vida filosófica quando essa indeterminação, por mais apavorante que seja, nos fascina e nos arranca de nós mesmos. Assim, quando falo em vida filosófica, penso nas palavras extraordinárias escritas por Merleau-Ponty no dia em que foi recebido no Collège de France, que me permito reproduzir aqui, citando o Elogio da Filosofia:
""A filosofia e o ser absoluto não estão acima dos erros rivais que se opõem no século; esses erros não são erros da mesma maneira e a filosofia, que é a verdade integral, tem a tarefa de dizer o que pode integrar de cada um deles [...]. O absoluto filosófico não tem sede em parte alguma, nunca está alhures, mas é para ser defendido em cada acontecimento [...]. Ao final de uma reflexão que, de início, o afasta, mas para melhor fazê-lo experimentar os laços de verdade que o prendem ao mundo e à história, o filósofo encontra, não o abismo do si ou do saber absoluto, mas a imagem renovada do mundo e dele próprio plantado nela, no meio dos outros [...]. O filósofo é o homem que desperta e fala, e o homem contém silenciosamente os paradoxos da filosofia, porque para ser inteiramente homem, é preciso ser um pouco e pouco menos homem"".
(...)"
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Discurso Marilena Chauí (terceira parte)
"(...)
Resta, porém, explicar por que aceitei a honraria francesa e as generosas homenagens de meus colegas, amigos, estudantes e funcionários brasileiros.
Um leitor dos primeiros parágrafos do Tratado da emenda do intelecto há de se surpreender que eu as aceitasse, pois Espinosa afirma que nós nos perdemos de nós próprios e dos outros quando consideramos um bem supremo, entre outras coisas, as honras. Todavia, o leitor paciente há de esperar alguns parágrafos seguintes, quando o filósofo também afirma que as honras são boas quando as desejamos com moderação. A honra é uma paixão alegre, que fortalece nossa potência de existir, pensar e agir.
No entanto, sou eu, agora, que me pergunto por que aceitei essa honra.
Para essa indagação, possuo duas respostas, uma delas psicológica ou biográfica e uma outra, política.
Conta minha mãe, que, em 1946, visitou nossa pequena cidade interiorana um pianista polonês que deu um concerto. Depois de tocar esplendorosamente por mais de uma hora, o pianista levantou-se e indagou se havia na platéia quem tocasse piano e convidava os pianistas locais a tocar algumas peças. Embora houvesse no público três professoras de piano e algumas alunas adolescentes, ninguém se apresentou. Para surpresa e pavor de minha mãe, eu, com cinco anos de idade e recém-iniciada no piano, levantei-me, fui ao palco e toquei Danúbio Azul, numa versão simplificada. O que minha mãe, a platéia e o pianista jamais souberam foi o motivo de eu ter ido executar infantilmente o Danúbio Azul. Longe de ser a pretensão de alguém que se julgava pianista, dirigi-me ao palco porque não pude suportar que o pianista polonês convidasse alguém para reunir-se a ele naquilo que amava fazer e que ninguém se juntasse a ele, deixando-o solitário no palco. Foi o sentimento de sua enorme solidão que me levou ao piano.
Se narro esse episódio é porque, e aqui vem minha resposta política, num mundo acadêmico hegemonicamente masculino, considero intolerável a solidão das mulheres e por isso, ao ser chamada ao palco da honra, nele subi para que nele também estejam as mulheres.
Num ensaio belíssimo, chamado O silêncio das romanas, o helenista e romanista Moses Finley nos lembra que as mulheres de Roma não possuíam nome próprio, pois seus nomes eram apenas os de suas famílias escritos no feminino. Dessas mulheres, escreve Finley, não possuímos nada, sequer uma carta, um poema. Possuímos apenas as inscrições em suas lápides, nas quais pais, maridos e filhos dizem que foram filhas, esposas e mães extremosas e amadas. Penso que a homenagem que hoje me é feita faz parte do reconhecimento do nome próprio das mulheres, e que ao aceitá-la, contribuo para diminuir nossa solidão.
Num comovente ensaio, Um quarto para si, um ciclo de conferências dedicado à relação entre as mulheres e a literatura, Virgínia Woolf propõe uma ficção. Imaginemos, diz ela, que Shakespeare tivesse tido uma irmã e que ela, como ele, fosse extremamente inteligente, sensível, bem dotada para as humanidades, talentosa para a poesia e para a dramaturgia. Enquanto ele recebia uma educação propícia a desenvolver seu talento, ela era treinada nos afazeres domésticos e na preparação para o casamento. Quando ele partiu para Londres, ela deveria partir com um marido. Inconformada, fugiu também para Londres. Ali, porém, não conseguiu publicar seus poemas nem encenar suas peças, não tinha abrigo, comida nem agasalho para os dias de frio. Numa noite de inverno, encolhida e na mais profunda solidão, ainda jovem, morreu na neve, ignorada por todos e de todos desconhecida. E escreve Virgínia:
A irmã de Shakespeare, da qual ninguém fala, vive ainda. Ela vive em vós e em mim e em inúmeras outras mulheres que não estão presentes aqui esta noite porque estão lavando os pratos ou ninando seus filhos. Mas ela vive, pois os grandes poetas não morrem jamais, são presenças eternas; apenas esperam a ocasião para aparecer entre nós em carne e osso. Hoje, creio, está em vós o poder de dar essa ocasião à irmã de Shakespeare. Eis minha convicção: [...] se tivermos 150 libras de renda e um quarto só para nós, se adquirirmos o hábito, a liberdade e a coragem de escrever exatamente o que pensamos, se conseguirmos sair da sala-de-estar e ver os humanos não apenas em suas relações uns com os outros, mas também com a realidade [...], então se apresentará a ocasião para que a irmã morta de Shakespeare tome a forma humana a que teve tantas vezes de renunciar. [...] Mas não há que esperar sua vinda sem esforço, sem preparação de nossa parte, sem que estejamos resolvidas a lhe oferecer um novo nascimento, a possibilidade de viver e de escrever. Mas eu vos asseguro que ela virá, se trabalharmos por ela e que trabalhar assim é coisa que vale a pena.
A honra e a homenagem que hoje tão generosamente me são feitas são o reconhecimento de que é possível tirar as mulheres da solidão para vê-las dar vida à irmã de Shakespeare.
Muito obrigada".
Um leitor dos primeiros parágrafos do Tratado da emenda do intelecto há de se surpreender que eu as aceitasse, pois Espinosa afirma que nós nos perdemos de nós próprios e dos outros quando consideramos um bem supremo, entre outras coisas, as honras. Todavia, o leitor paciente há de esperar alguns parágrafos seguintes, quando o filósofo também afirma que as honras são boas quando as desejamos com moderação. A honra é uma paixão alegre, que fortalece nossa potência de existir, pensar e agir.
No entanto, sou eu, agora, que me pergunto por que aceitei essa honra.
Para essa indagação, possuo duas respostas, uma delas psicológica ou biográfica e uma outra, política.
Conta minha mãe, que, em 1946, visitou nossa pequena cidade interiorana um pianista polonês que deu um concerto. Depois de tocar esplendorosamente por mais de uma hora, o pianista levantou-se e indagou se havia na platéia quem tocasse piano e convidava os pianistas locais a tocar algumas peças. Embora houvesse no público três professoras de piano e algumas alunas adolescentes, ninguém se apresentou. Para surpresa e pavor de minha mãe, eu, com cinco anos de idade e recém-iniciada no piano, levantei-me, fui ao palco e toquei Danúbio Azul, numa versão simplificada. O que minha mãe, a platéia e o pianista jamais souberam foi o motivo de eu ter ido executar infantilmente o Danúbio Azul. Longe de ser a pretensão de alguém que se julgava pianista, dirigi-me ao palco porque não pude suportar que o pianista polonês convidasse alguém para reunir-se a ele naquilo que amava fazer e que ninguém se juntasse a ele, deixando-o solitário no palco. Foi o sentimento de sua enorme solidão que me levou ao piano.
Se narro esse episódio é porque, e aqui vem minha resposta política, num mundo acadêmico hegemonicamente masculino, considero intolerável a solidão das mulheres e por isso, ao ser chamada ao palco da honra, nele subi para que nele também estejam as mulheres.
Num ensaio belíssimo, chamado O silêncio das romanas, o helenista e romanista Moses Finley nos lembra que as mulheres de Roma não possuíam nome próprio, pois seus nomes eram apenas os de suas famílias escritos no feminino. Dessas mulheres, escreve Finley, não possuímos nada, sequer uma carta, um poema. Possuímos apenas as inscrições em suas lápides, nas quais pais, maridos e filhos dizem que foram filhas, esposas e mães extremosas e amadas. Penso que a homenagem que hoje me é feita faz parte do reconhecimento do nome próprio das mulheres, e que ao aceitá-la, contribuo para diminuir nossa solidão.
Num comovente ensaio, Um quarto para si, um ciclo de conferências dedicado à relação entre as mulheres e a literatura, Virgínia Woolf propõe uma ficção. Imaginemos, diz ela, que Shakespeare tivesse tido uma irmã e que ela, como ele, fosse extremamente inteligente, sensível, bem dotada para as humanidades, talentosa para a poesia e para a dramaturgia. Enquanto ele recebia uma educação propícia a desenvolver seu talento, ela era treinada nos afazeres domésticos e na preparação para o casamento. Quando ele partiu para Londres, ela deveria partir com um marido. Inconformada, fugiu também para Londres. Ali, porém, não conseguiu publicar seus poemas nem encenar suas peças, não tinha abrigo, comida nem agasalho para os dias de frio. Numa noite de inverno, encolhida e na mais profunda solidão, ainda jovem, morreu na neve, ignorada por todos e de todos desconhecida. E escreve Virgínia:
A irmã de Shakespeare, da qual ninguém fala, vive ainda. Ela vive em vós e em mim e em inúmeras outras mulheres que não estão presentes aqui esta noite porque estão lavando os pratos ou ninando seus filhos. Mas ela vive, pois os grandes poetas não morrem jamais, são presenças eternas; apenas esperam a ocasião para aparecer entre nós em carne e osso. Hoje, creio, está em vós o poder de dar essa ocasião à irmã de Shakespeare. Eis minha convicção: [...] se tivermos 150 libras de renda e um quarto só para nós, se adquirirmos o hábito, a liberdade e a coragem de escrever exatamente o que pensamos, se conseguirmos sair da sala-de-estar e ver os humanos não apenas em suas relações uns com os outros, mas também com a realidade [...], então se apresentará a ocasião para que a irmã morta de Shakespeare tome a forma humana a que teve tantas vezes de renunciar. [...] Mas não há que esperar sua vinda sem esforço, sem preparação de nossa parte, sem que estejamos resolvidas a lhe oferecer um novo nascimento, a possibilidade de viver e de escrever. Mas eu vos asseguro que ela virá, se trabalharmos por ela e que trabalhar assim é coisa que vale a pena.
A honra e a homenagem que hoje tão generosamente me são feitas são o reconhecimento de que é possível tirar as mulheres da solidão para vê-las dar vida à irmã de Shakespeare.
Muito obrigada".
quinta-feira, 8 de julho de 2010
leminski lemos lento
terça-feira, 6 de julho de 2010
você já tem todas as chaves
Raro e comum
(Fred Martins/Marcelo Diniz)
Não vou deixar pistas e tudo
O que eu fizer, já terá sido
Quem perguntar, já terei ido
Se eu responder, somente mudo
Não vou fazer o menor ruído
Não vou guardar nenhum rancor
Não vou deixar nada escondido
Não vou rimar amor e dor
Não vou fazer nenhum ruído
Nem responder em língua morta
Você já tem todas as chaves
E abrirá todas as portas
Eu vou deixar tudo bem claro
Se tudo fez ou não sentido
O mais comum e o que foi raro
Raro e comum já terá sido
domingo, 27 de junho de 2010
A quantas anda a liberdade de opinião na União Européia:
http://operamundi.uol.com.br/opiniao_ver.php?idConteudo=1164&utm_source=twitterfeed&utm_medium=twitter
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por ocasião da minha cirurgia bucal, tive a oportunidade de perguntar ao meu ilustre médico-odonto a questão que minha dor de dente não se cansa de me colocar: sorvete é ótimo, mas se cerveja tb gela, pra que continuar sóbria?
sábado, 26 de junho de 2010
por uma ética reflexiva
desde o início, a obra de foucault gerou grande repercussão na frança por inúmeras razões. não foram poucos os que pretenderam duelar com o filósofo, para tanto o provocando de todas as maneiras. a postura dele, ao menos em sua fase madura, foi das mais mal interpretadas, pois diante das provocações simplesmente se calava.
não reagia no momento, ao menos. negava-se a responder, a entrar no jogo que se mostrava sincero apenas em aparência. na verdade, não havia sinceridade possível no campo político. o duelo, pensava ele, só poderia resultar em duas situações, ambas detestáveis, a conversão ou a destruição de alguém. a disposição das pessoas, tal como posta em um campo desses, não permitiria outra consequência.
do contrário, ponderava motivos, refletia e publicava as objeções à sua teoria, assinalando respostas iou, não raro, deixando abertas as portas. certas questões que lhe foram opostas por pessoas e por si mesmo renderam anos e anos de silêncio - para melhor refletir (por exemplo, até a publicação do "o cuidado de si").
me lembro disso, pensando nas discussões políticas que tenho, especialmente na casa da lagartixa preta, mas também na facu. às vezes a gente não se ouve. dizer isso é trivial e profundamente verdadeiro. quando a situação está para se tornar um duelo, ganha (por todos) quem abdicar da resposta. mas também, suponho, só nos colocamos eticamente em uma discussão em que polemizamos de corpo e alma quando não perdemos de vista o silêncio que deve se abrir (em nós) após cada idéia lançada. cara, como isso é foda.
não reagia no momento, ao menos. negava-se a responder, a entrar no jogo que se mostrava sincero apenas em aparência. na verdade, não havia sinceridade possível no campo político. o duelo, pensava ele, só poderia resultar em duas situações, ambas detestáveis, a conversão ou a destruição de alguém. a disposição das pessoas, tal como posta em um campo desses, não permitiria outra consequência.
do contrário, ponderava motivos, refletia e publicava as objeções à sua teoria, assinalando respostas iou, não raro, deixando abertas as portas. certas questões que lhe foram opostas por pessoas e por si mesmo renderam anos e anos de silêncio - para melhor refletir (por exemplo, até a publicação do "o cuidado de si").
me lembro disso, pensando nas discussões políticas que tenho, especialmente na casa da lagartixa preta, mas também na facu. às vezes a gente não se ouve. dizer isso é trivial e profundamente verdadeiro. quando a situação está para se tornar um duelo, ganha (por todos) quem abdicar da resposta. mas também, suponho, só nos colocamos eticamente em uma discussão em que polemizamos de corpo e alma quando não perdemos de vista o silêncio que deve se abrir (em nós) após cada idéia lançada. cara, como isso é foda.
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terça-feira, 22 de junho de 2010
então,
um quilo de abóbora descascada e cortada em pedaços mais ou menos quadrados e uniformes. 700gr de acúcar. cravo. canela.
pôr tudo na panela de pressão. sacudir a panela [sic] e colocar no fogo (sem água, nem nada) na potência alta, "até o apitinho fazer chichichi". quando ele começar a funcionar contar 8 min. e desligar. não abrir a panela até esfriar. se a calda estiver rala, separar a abóbora e apurar mais no fogo a calda até engrossar. depois jogar por cima.
c'est ça!
um quilo de abóbora descascada e cortada em pedaços mais ou menos quadrados e uniformes. 700gr de acúcar. cravo. canela.
pôr tudo na panela de pressão. sacudir a panela [sic] e colocar no fogo (sem água, nem nada) na potência alta, "até o apitinho fazer chichichi". quando ele começar a funcionar contar 8 min. e desligar. não abrir a panela até esfriar. se a calda estiver rala, separar a abóbora e apurar mais no fogo a calda até engrossar. depois jogar por cima.
c'est ça!
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"doce de abóbora de 8 minutos"
a vó cira adorou essa história de receita e quer me passar outra!
só que ela fala muito rápido e toda hora devo pedir pra ela esperar um pouquinho. enquanto espera eu escrever outras coisas (como estas), ela começa a contar histórias - da minha tia, da minhã mãe, de um passado beem distante. mas, de repente, ela volta pro presente. agora mesmo me perguntou "isso aí não é que nem uma máquina de escrever? pensei que fosse!" respondi que era. ela arrematou: "ah, então, por que vc demora tanto?" (risos).
minha vó é muito linda, não sei por que nunca antes falei dela por aqui. na verdade, tem muitas pessoas lindas sobre as quais ainda não falei.
"doce de abóbora de 8 minutos" foi o nome que minha vó deu pra uma receita que ela disse que pegou não sabe com quem, nem quando, que ela provavelmente aprendeu e modificou, como costuma fazer. "tem açúcar demais nessa receita [da tv]", ou, espantada, "tudo isso de tempo? não sei como num queima".
puxa, enquanto escrevi isso, passou o tempo mesmo. agora começou a novela e ela foi pra sala. "fica pra depois". e, diante da minha cara de desapontamento: "eu volto no intervalo". humpf.
só que ela fala muito rápido e toda hora devo pedir pra ela esperar um pouquinho. enquanto espera eu escrever outras coisas (como estas), ela começa a contar histórias - da minha tia, da minhã mãe, de um passado beem distante. mas, de repente, ela volta pro presente. agora mesmo me perguntou "isso aí não é que nem uma máquina de escrever? pensei que fosse!" respondi que era. ela arrematou: "ah, então, por que vc demora tanto?" (risos).
minha vó é muito linda, não sei por que nunca antes falei dela por aqui. na verdade, tem muitas pessoas lindas sobre as quais ainda não falei.
"doce de abóbora de 8 minutos" foi o nome que minha vó deu pra uma receita que ela disse que pegou não sabe com quem, nem quando, que ela provavelmente aprendeu e modificou, como costuma fazer. "tem açúcar demais nessa receita [da tv]", ou, espantada, "tudo isso de tempo? não sei como num queima".
puxa, enquanto escrevi isso, passou o tempo mesmo. agora começou a novela e ela foi pra sala. "fica pra depois". e, diante da minha cara de desapontamento: "eu volto no intervalo". humpf.
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o peixe da minha vó cira
minha vó jacira faz um peixe ensopado sensacional e, a partir dele, um pirão bem famoso no prédio. é tão bom que resolvi registrar, até pro caso de alguém se animar a ir pra cozinha...
pegar um quilo de merlusa em filé (melhor as partes mais grossas) e temperar com sal e pimenta do reino. se fosse pra fritar ela ia colocar limão também, mas como é pra fazer ensopado não pode pra não coalhar. depois, coloca o peixe na panela por baixo e, em cima, cebola, tomate em rodela e azeite de oliva - na falta do dendê. deixar ferver (vai sair água do peixe, sem precisar adicionar). a seguir, colocar leite de vaca e, mais pro final, leite de coco. no final, adicionar coentro, se vc gostar.
pra fazer o pirão, separar uma parte do caldo do ensopado acima e colocar numa panela com farinha de mandioca. minha vó gosta de colocar pouca farinha pra deixar o pirão molinho. espetáááculo. ah, sim, minha vó disse aqui que essa receita dá pra 6 pessoas.
ei, vovó, sua receita de pernambuco tá na rede mundial!
pegar um quilo de merlusa em filé (melhor as partes mais grossas) e temperar com sal e pimenta do reino. se fosse pra fritar ela ia colocar limão também, mas como é pra fazer ensopado não pode pra não coalhar. depois, coloca o peixe na panela por baixo e, em cima, cebola, tomate em rodela e azeite de oliva - na falta do dendê. deixar ferver (vai sair água do peixe, sem precisar adicionar). a seguir, colocar leite de vaca e, mais pro final, leite de coco. no final, adicionar coentro, se vc gostar.
pra fazer o pirão, separar uma parte do caldo do ensopado acima e colocar numa panela com farinha de mandioca. minha vó gosta de colocar pouca farinha pra deixar o pirão molinho. espetáááculo. ah, sim, minha vó disse aqui que essa receita dá pra 6 pessoas.
ei, vovó, sua receita de pernambuco tá na rede mundial!
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terça-feira, 15 de junho de 2010
dizendo que mais de 100 ativistas do navio de ajuda humanitária que covardemente atacou eram envolvidos com terrorismo, israel tenta justificar "o que não tem conserto, o que não tem medida, o que não tem decência, o que não tem governo, o que não tem juízo, o que não tem tamanho".
mais infos sobre o ataque israelense:
http://noticias.r7.com/internacional/noticias/veja-cobertura-completa-do-ataque-israelense-20100531.html
mais infos sobre o ataque israelense:
http://noticias.r7.com/internacional/noticias/veja-cobertura-completa-do-ataque-israelense-20100531.html
o mundo da copa
Jornal de uma Copa do Mundo em solo minado (3ª parte)
As línguas recepcionam, todos os dias, palavras desconhecidas, sem jamais fazê-lo expressamente. e, de uma só vez, vê-se bem que a diversidade cultural está longe de ser uma realidade, um ponto de vista orgânico. Assim, a palavra « vuvuzela » que é dita no feminino, entrou em casa pela porta da frente, tornou-se familiar em menos de uma semana. Os meios de comunicação também servem para isso, vulgarizar as palavras que, em tempos comuns, seriam colocadas à sombra, no index, invisíveis, sem interesse. É suficiente ver as manchetes de certos jornais, por esses dias, para se convencer disso; é suficiente escutar os comentários dos jornalistas e dar uma olhada pela internet, a maior de todas as portas, hoje, do humor do mundo. Querem proibir a vuvuzela. Atribuem-lhe todos os males, como se este instrumento, que faz a diferença, tivesse criado algum barulho sobre um estádio, durante a Copa do Mundo ou simplesmente uma partida amigável, enquanto seus partidários defendem seu instrumento local em alto e bom som. Eis o Mundial ou a ocasião sonhada para que este barulho (que se mede aqui em quantos decibéis?) entre, de maneira fracassada, no imaginário de todos vindos da África do Sul.
Ao mesmo tempo, a abertura do futebol se dá, sempre, em meio ao barulho, fofocas, escândalos, publicidade, bling-bling, dinheiro e tudo o que já sabemos. Na comunicação, como na política, nada é por acaso. Assim, os Bleus vão reformar um campo de futebol de cidade x para cuidar da imagem de sua marca, arranhando de leve, como crianças terríveis, a Secretária de Estado encarregada pelo esporte.
Felizmente, outras equipes salvam o dia. Ontem, o time de Gana ofereceu seu primeiro gol na África: os torcedores podiam dançar e carregar [roupas de?] canários na cabeça. Eles já tomaram uma parte do poder, melhor guardar quente o resto dentro de um pote sagrado a exibi-lo a cada vitória. Com a Alemanha - que marcou 4 gols contra a Austrália - houve algumas belas coreografias, o esporte retomou a superioridade sobre o terreno do jogo, silencioso, escuro e minado depois do começo. As vuvuzelas foram recolocadas em um lugar de honra, dando ao público diante da tela da tv e a todos os torcedores, a ocasião de exultar cada gol, de cobrir esta bela partida Alemanha-Austrália, do começo ao fim. As vuvuzelas assumem a temperatura das equipes, a tonalidade dos jogos e, é preciso dizer, impedem que se escutem os insultos - aí inclusive os racistas - e outras ofensas que fazem parte do terreno minado do futebol.
Sei que zona eles são capazes de fazer, os torcedores alemães. As vuvuzelas são brinquedinhos comparadas com os espetáculos que eles podem dar a escutar e ver, tal como notei em 2006, durante o Mundial, quando passei em Stuttgart para um debate que achei surrealista, sobre futebol e literatura... Então, será que estamos realmente prontos a aceitar a diversidade dos sons, no momento em que cada um se fecha na sua surdez local?
Tanella Boni, ela nasceu na costa do marfim e tem escrito coisas interessantes sobre a copa. é poeta e romancista, filósofa e professora de literatura. tem coisas muito legais sobre a globalização, as áfricas, os feminismos, multiculturalismo e outras questões políticas. em 2008 lançou a obra "Como vivem as mulheres da África?". escreve no blog www.tanellaboni.net. fui saber dela hoje!
As línguas recepcionam, todos os dias, palavras desconhecidas, sem jamais fazê-lo expressamente. e, de uma só vez, vê-se bem que a diversidade cultural está longe de ser uma realidade, um ponto de vista orgânico. Assim, a palavra « vuvuzela » que é dita no feminino, entrou em casa pela porta da frente, tornou-se familiar em menos de uma semana. Os meios de comunicação também servem para isso, vulgarizar as palavras que, em tempos comuns, seriam colocadas à sombra, no index, invisíveis, sem interesse. É suficiente ver as manchetes de certos jornais, por esses dias, para se convencer disso; é suficiente escutar os comentários dos jornalistas e dar uma olhada pela internet, a maior de todas as portas, hoje, do humor do mundo. Querem proibir a vuvuzela. Atribuem-lhe todos os males, como se este instrumento, que faz a diferença, tivesse criado algum barulho sobre um estádio, durante a Copa do Mundo ou simplesmente uma partida amigável, enquanto seus partidários defendem seu instrumento local em alto e bom som. Eis o Mundial ou a ocasião sonhada para que este barulho (que se mede aqui em quantos decibéis?) entre, de maneira fracassada, no imaginário de todos vindos da África do Sul.
Ao mesmo tempo, a abertura do futebol se dá, sempre, em meio ao barulho, fofocas, escândalos, publicidade, bling-bling, dinheiro e tudo o que já sabemos. Na comunicação, como na política, nada é por acaso. Assim, os Bleus vão reformar um campo de futebol de cidade x para cuidar da imagem de sua marca, arranhando de leve, como crianças terríveis, a Secretária de Estado encarregada pelo esporte.
Felizmente, outras equipes salvam o dia. Ontem, o time de Gana ofereceu seu primeiro gol na África: os torcedores podiam dançar e carregar [roupas de?] canários na cabeça. Eles já tomaram uma parte do poder, melhor guardar quente o resto dentro de um pote sagrado a exibi-lo a cada vitória. Com a Alemanha - que marcou 4 gols contra a Austrália - houve algumas belas coreografias, o esporte retomou a superioridade sobre o terreno do jogo, silencioso, escuro e minado depois do começo. As vuvuzelas foram recolocadas em um lugar de honra, dando ao público diante da tela da tv e a todos os torcedores, a ocasião de exultar cada gol, de cobrir esta bela partida Alemanha-Austrália, do começo ao fim. As vuvuzelas assumem a temperatura das equipes, a tonalidade dos jogos e, é preciso dizer, impedem que se escutem os insultos - aí inclusive os racistas - e outras ofensas que fazem parte do terreno minado do futebol.
Sei que zona eles são capazes de fazer, os torcedores alemães. As vuvuzelas são brinquedinhos comparadas com os espetáculos que eles podem dar a escutar e ver, tal como notei em 2006, durante o Mundial, quando passei em Stuttgart para um debate que achei surrealista, sobre futebol e literatura... Então, será que estamos realmente prontos a aceitar a diversidade dos sons, no momento em que cada um se fecha na sua surdez local?
Tanella Boni, ela nasceu na costa do marfim e tem escrito coisas interessantes sobre a copa. é poeta e romancista, filósofa e professora de literatura. tem coisas muito legais sobre a globalização, as áfricas, os feminismos, multiculturalismo e outras questões políticas. em 2008 lançou a obra "Como vivem as mulheres da África?". escreve no blog www.tanellaboni.net. fui saber dela hoje!
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domingo, 13 de junho de 2010
"Há muito tempo queria trabalhar com Marco Antônio Braz. QUando lemos A ALMA BOA DE SETSUAN me impressionei com a atualidade e o humor do texto. Quando ele me disse que gostaria de encenar a peça porque acha que Brecht é divertido, me entusiasmei. Também acho. Brecht é divertido e tem a sabedoria de, através de uma história bem contada, dizer o que quer, questionando o caos social, no qual, inacreditavelmente, nos acostumamos a viver.
Quando Chen Tê é escolhida como a única alma boa achada pelos deuses cansados de procurar, ela mesmo duvida disso: "Como posso ser boa se tenho que pagar o aluguel?". Gosto dessa frase, gosto deste assunto. Quero viver Chen Tê para, junto com vocês, tentar decifrar o enigma deste mundo em que vivemos, onde o indivíduo parece ser incompatível com o todo. Onde já não basta ser bom, digno e coerente com o que se acredita. Onde tudo leva ao pensamento individual, cada um lutando desesperadamente pelo seu quinhão. Chen Tê traveste-se de 'seu primo' para conseguir dizer não, para conseguir não ser boa, para não ser usurpada. Será que vivemos a impossibilidade da bondade? Será que a existência de uma sociedade solidária é impraticável no meio de tamanha diferença social? Será que estamos condenados cada vez mais a não nos comprometermos? Aos fones de ouvido, aos e-mails rápidos, aos motoristas solitários indo para o mesmo lugar que seu vizinho de congestionamento, às cabeças baixas, medrosas de testemunhar algum crime?
Na verdade, não acho que a peça trate exatamente da impossibilidade da bondade, pois a própria palavra bondade já foi transfigurada pelos tempos que vivemos. Falar hoje que alguém é bom é quase falar que esse alguém é bobo. Acho que a peça fala claramente é da impossibilidade da disponibilidade, do coração aberto, da esperança. Mais que boa, Chen Tê é disponível. Acredita na possibilidade de vivermos em harmonia. É muito importante falarmos do cuidado que precisamos ter com o que estamos nos tornando, vivendo num mundo onde não dou mais a mão com medo que me tomem o braço, ignorando que, muitas vezes, só minha mão estendida moveria montanhas. Estamos falando de comprometimento, de sinal de alerta, estamos questionando por que precisa ser assim. Deve haver uma saída. Tem de haver! Tenho necessidade absoluta de contar esta história e estou muito feliz de estar ao lado de gente que admiro tanto para esta empreitada" Denise Fraga, Alma Boa de Setsuan, de Bertolt Brecht (em cartaz até 1º de julho de 2010, temporada popular).
Quando Chen Tê é escolhida como a única alma boa achada pelos deuses cansados de procurar, ela mesmo duvida disso: "Como posso ser boa se tenho que pagar o aluguel?". Gosto dessa frase, gosto deste assunto. Quero viver Chen Tê para, junto com vocês, tentar decifrar o enigma deste mundo em que vivemos, onde o indivíduo parece ser incompatível com o todo. Onde já não basta ser bom, digno e coerente com o que se acredita. Onde tudo leva ao pensamento individual, cada um lutando desesperadamente pelo seu quinhão. Chen Tê traveste-se de 'seu primo' para conseguir dizer não, para conseguir não ser boa, para não ser usurpada. Será que vivemos a impossibilidade da bondade? Será que a existência de uma sociedade solidária é impraticável no meio de tamanha diferença social? Será que estamos condenados cada vez mais a não nos comprometermos? Aos fones de ouvido, aos e-mails rápidos, aos motoristas solitários indo para o mesmo lugar que seu vizinho de congestionamento, às cabeças baixas, medrosas de testemunhar algum crime?
Na verdade, não acho que a peça trate exatamente da impossibilidade da bondade, pois a própria palavra bondade já foi transfigurada pelos tempos que vivemos. Falar hoje que alguém é bom é quase falar que esse alguém é bobo. Acho que a peça fala claramente é da impossibilidade da disponibilidade, do coração aberto, da esperança. Mais que boa, Chen Tê é disponível. Acredita na possibilidade de vivermos em harmonia. É muito importante falarmos do cuidado que precisamos ter com o que estamos nos tornando, vivendo num mundo onde não dou mais a mão com medo que me tomem o braço, ignorando que, muitas vezes, só minha mão estendida moveria montanhas. Estamos falando de comprometimento, de sinal de alerta, estamos questionando por que precisa ser assim. Deve haver uma saída. Tem de haver! Tenho necessidade absoluta de contar esta história e estou muito feliz de estar ao lado de gente que admiro tanto para esta empreitada" Denise Fraga, Alma Boa de Setsuan, de Bertolt Brecht (em cartaz até 1º de julho de 2010, temporada popular).
terça-feira, 8 de junho de 2010
o palito de sorvete
com que mexo o açúcar
no café com leite
bóia
não obstante o peso da mão
resiste nas alturas
da superfície marrom
tão distante do chão
do copo
sustentando-se em pé
como po-
de; empina, cede, vem
em diagonal em um balé
leitoso cor de café
este pedaço de madeira
bóia
como a barcarola
que me trouxe até
aqui.
com que mexo o açúcar
no café com leite
bóia
não obstante o peso da mão
resiste nas alturas
da superfície marrom
tão distante do chão
do copo
sustentando-se em pé
como po-
de; empina, cede, vem
em diagonal em um balé
leitoso cor de café
este pedaço de madeira
bóia
como a barcarola
que me trouxe até
aqui.
quinta-feira, 27 de maio de 2010
domingo, 23 de maio de 2010
outro dia assisti a uma palestra de um professor americano e me chamou atenção que toda hora ele falasse "the criteria", "the termini". verdade que no direito ainda se usa muito latim, mas é basicamente para expressões fixas que se tornaram chavões, sem diversidade vocabular: é sempre data maxima venia, permissa venia, exempli gratia, ab initio, in concreto ou (ipsis) litteris. francamente, ele não parecia ser o tipo que valorizava o conhecimento de qualquer coisa que alguém pudesse um dia chamar de 'morta'.
lendo um pouco, hoje me dei conta de que os reis franceses dominaram a inglaterra por mais ou menos 300 anos durante a idade média. e que é por isso que palavras em aparência tão inglesas quanto 'wall' derivam daquela parede romana ruída, denominada uallum.
a influência do imperium de roma em portugal foi ainda mais direta e duradoura. daí que sua língua se mostre ainda mais evidente na nossa. me impressiono com a beleza das correlações de sentido e com os cruzamentos. a nossa data, a nossa agenda são plurais das palavras neutras datum, agendum. um monte de campus universitários formam um campi. outro exemplum cotidianus é o medium, aquele cara que recebe espíritus. ele está bem no meio - entre a terra dos humanos e a das almas. um monte deles não forma um conjunto de médiuns, nem uma casa de espiritismo, mas uma media. eles são a mídia dos mortos e dos vivos.
sexta-feira, 21 de maio de 2010
quarta-feira, 12 de maio de 2010
"consideremos os colégios do século XVIII. visto globalmente, pode-se ter a impressão de que aí, praticamente não se fala em sexo. entretanto, basta atentar para os dispositivos arquitetônicos, para os regulamentos de disciplina e para toda a organização interior: lá se trata continuamente do sexo. os construtores pensaram nisso, e explicitamente. os organizadores levaram-no em conta de modo permanente. todos os detentores de uma parcela de autoridade se colocam num estado de alerta perpétuo: reafirmando sem trégua pelas disposições, pelas precauções tomadas, e pelo jogo das punições e responsabilidades. o espaço da sala, a forma das mesas, o arranjo dos pátios de recreio, a distribuição dos dormitórios (com ou sem separações, com ou sem cortina), os regulamentos elaborados para a vigilância do recolhimento e do sono, tudo fala da maneira mais prolixa da sexualidade das crianças. o que se poderia chamar de discurso interno da instituição - o que ela profere para si mesma e circula entre os que a fazem funcionar - articula-se, em grande parte, sobre a constatação de que essa sexualidade existe: precoce, ativa, permanente".
(foucault, história da sexualidade: que vontade de saber, p. 34).
terça-feira, 11 de maio de 2010
ela virou o pescoço, se encostou no braço apoiado no joelho, mudou o cabelo de lado, fechou os olhos. esperou como quem nem esperava. estava acomodada na ponta do alto da escada central. foi tão devagar o encosto do lábio de baixo, depois o de cima, perfume quente. só percebeu que antes sonhava quando notou de repente que o mundo era uma boca macia na nuca.
situação
me diz, vovó
me diz, vovó
e tenha dó
quem foi que botou maisena no meu pó...
.
(são murungar, bezerra da silva)
me diz, vovó
e tenha dó
quem foi que botou maisena no meu pó...
.
(são murungar, bezerra da silva)
sábado, 1 de maio de 2010
"Saí na avenida
Só pra vê-lo dançar
Descobri que ele pra mim
Não sabia sambar
O que aconteceu
Com meu bem querer
Se já não me queres
Porque me fazer sofrer
Eu não quero me enfeitar
Eu não quero esse papel
Eu não quero me cobrir
De pedrarias, prata e pó
Pra provar: eu sou a única
Sou aquela que derrama o amor
Pelas paredes pelas janelas
Pelo chão
Eu sou a única
Eu não sou exatamente
Como a mulher na esquina
A princesinha do bar
A menina de flerte
Sorte que tens fantasia
Pois hoje é dia de carnaval
Sabes que eu sozinha
Não sei brincar de sorrir no final
Sim eu quero me enfeitar
Eu quero esse papel pra mim
Eu quero é me cobrir
Só pra vê-lo dançar
Descobri que ele pra mim
Não sabia sambar
O que aconteceu
Com meu bem querer
Se já não me queres
Porque me fazer sofrer
Eu não quero me enfeitar
Eu não quero esse papel
Eu não quero me cobrir
De pedrarias, prata e pó
Pra provar: eu sou a única
Sou aquela que derrama o amor
Pelas paredes pelas janelas
Pelo chão
Eu sou a única
Eu não sou exatamente
Como a mulher na esquina
A princesinha do bar
A menina de flerte
Sorte que tens fantasia
Pois hoje é dia de carnaval
Sabes que eu sozinha
Não sei brincar de sorrir no final
Sim eu quero me enfeitar
Eu quero esse papel pra mim
Eu quero é me cobrir
De pedrarias, prata e pó
Pra mostrar: não sou a única
Mas ainda derramo o amor
Pelas paredes pelas janelas
Pelo chão
Eu não sou a única
Eu sou exatamente
Como a mulher na esquina
A princesinha do bar
A menina de flerte"
Pra mostrar: não sou a única
Mas ainda derramo o amor
Pelas paredes pelas janelas
Pelo chão
Eu não sou a única
Eu sou exatamente
Como a mulher na esquina
A princesinha do bar
A menina de flerte"
.
.
.
(ele não sabe sambar, de juliana kehl e dipa)
sábado, 24 de abril de 2010
agora que assei uma travessa de batatas, cebola e requeijão, fui te ver desarmada de livro, não te deixei cheirar (sozinha), fiz xixi na sua cama (enquanto dormíamos), você riu pra mim muito soberana e me exigiu meio totalitária sobre si, me machucou um pouco, acordei cedo e fiz café, faltou leite, lembrei disso há um segundo, nos levei pra passear ficarmos bêbadas de sol e pinga e mel, logo agora que esqueci o relógio em cima da escrivaninha roxa old-fashioned junto com minha blusa de tricô emprestada, 300 gramas de angústia mal passada e o refrão da música que ainda quero cantar com você, não é o momento, não quero, não pode ser o momento de me despedir.
"Pinte primeiro uma gaiola
com a porta aberta.
Em seguida pinte
alguma coisa graciosa,
alguma coisa simples, alguma coisa bonita,
alguma coisa útil...
ao pássaro.
Depois, coloque a tela contra uma árvore
no jardim,
no bosque
ou na floresta
e esconda-se
atrás da árvore
sem dizer nada, sem se mexer.
Às vezes o pássaro chega logo,
mas pode levar muitos, muitos anos
até se resolver.
Não desanime,
espere.
Espere, se preciso, durante anos.
A velocidade ou a lentidão da chegada
do pássaro, não tem a menor relação
com a qualidade da pintura.
Quando ele chegar
(se chegar)
mantenha o mais profundo silêncio,
espere que ele entre na gaiola.
Depois que entrar,
feche lentamente a porta com o pincel.
Aí então
apague uma por uma todas as varetas.
(Cuidado para não esbarrar em nenhuma pena
do pássaro.)
Finalmente pinte a árvore,
reservando o mais belo de seus ramos
ao pássaro.
Pinte também a verde folhagem e a doçura do
vento,
a poeira do sol,
o rumorejo dos bichinhos da relva no calor da
estação.
Depois aguarde que o pássaro se decida a
cantar.
Se ele não cantar,
mau sinal:
sinal de que o quadro não presta.
Mas bom sinal, se ele canta:
sinal de que você pode assinar o quadro.
Então retire suavemente
uma pena do pássaro
e escreva o seu nome a um canto do quadro".
* Como pintar um pássaro, de Jacques Prévert.
Tradução-homenagem de Carlos Drummond de Andrade.
(http://www.tanto.com.br/ronaldowerneck-dpc.htm)
com a porta aberta.
Em seguida pinte
alguma coisa graciosa,
alguma coisa simples, alguma coisa bonita,
alguma coisa útil...
ao pássaro.
Depois, coloque a tela contra uma árvore
no jardim,
no bosque
ou na floresta
e esconda-se
atrás da árvore
sem dizer nada, sem se mexer.
Às vezes o pássaro chega logo,
mas pode levar muitos, muitos anos
até se resolver.
Não desanime,
espere.
Espere, se preciso, durante anos.
A velocidade ou a lentidão da chegada
do pássaro, não tem a menor relação
com a qualidade da pintura.
Quando ele chegar
(se chegar)
mantenha o mais profundo silêncio,
espere que ele entre na gaiola.
Depois que entrar,
feche lentamente a porta com o pincel.
Aí então
apague uma por uma todas as varetas.
(Cuidado para não esbarrar em nenhuma pena
do pássaro.)
Finalmente pinte a árvore,
reservando o mais belo de seus ramos
ao pássaro.
Pinte também a verde folhagem e a doçura do
vento,
a poeira do sol,
o rumorejo dos bichinhos da relva no calor da
estação.
Depois aguarde que o pássaro se decida a
cantar.
Se ele não cantar,
mau sinal:
sinal de que o quadro não presta.
Mas bom sinal, se ele canta:
sinal de que você pode assinar o quadro.
Então retire suavemente
uma pena do pássaro
e escreva o seu nome a um canto do quadro".
* Como pintar um pássaro, de Jacques Prévert.
Tradução-homenagem de Carlos Drummond de Andrade.
(http://www.tanto.com.br/ronaldowerneck-dpc.htm)
segunda-feira, 19 de abril de 2010
vim te falar sacanagens d'après midi,
porcarias, poesias, tudo muito sincero,
sim sim, tudo muito respeitoso,
não sou de foder sem considerações
prelações pro seu sexo pelado
e se você me apela ao pêlo,
não me calo, faço falar o falo
na tua pele, e mil felações
discursivas, benzinadas,
invenção de uma língua que alucina
muito cordial, sim, cá estou ajoelhada
sobre jornais do chão da sala.
porcarias, poesias, tudo muito sincero,
sim sim, tudo muito respeitoso,
não sou de foder sem considerações
prelações pro seu sexo pelado
e se você me apela ao pêlo,
não me calo, faço falar o falo
na tua pele, e mil felações
discursivas, benzinadas,
invenção de uma língua que alucina
muito cordial, sim, cá estou ajoelhada
sobre jornais do chão da sala.
sexta-feira, 16 de abril de 2010
"vou acordar cedo, ligar a cafeteira
pôr o pão na torradeira e sentar à mesa
e te odiar por ter me dito sorrindo
e te odiar por ter me dito chorando
que já não dá mais
e te odiar sobretudo por não ter me dito
que já não dá mais
vou odiar não me chamar johnny
e não ter uma arma de qualquer calibre
e não ter uma pistolinha que dispara água
e nem um bodoque de borracha envelhecida
para ejetar essa coisa qualquer que ficou na garganta
vou pegar o café na cafeteira
encher a caneca e tomar sem açúcar
vou pegar o pão na torradeira
e cobri-lo com uns nacos de manteiga
não tenho tempo para ser
um poema de prévert
tomo meu café e saio
e na rua o ipê roxo
me lembra que o grande e nunca banal ciclo da vida veja só meu amigo
continua
e sobretudo deixa a mensagem clara quando alguém escorrega nas flores gosmentas caídas
no chão e precisa ir ao pronto-socorro levar pontos no queixo
no ponto de ônibus tem sempre um rapaz
ouvindo qualquer coisa que soa como erasure
por mim - hoje é sexta - ele que se engane para sempre no fio de seu ipod".
(angélica freitas)
pôr o pão na torradeira e sentar à mesa
e te odiar por ter me dito sorrindo
e te odiar por ter me dito chorando
que já não dá mais
e te odiar sobretudo por não ter me dito
que já não dá mais
vou odiar não me chamar johnny
e não ter uma arma de qualquer calibre
e não ter uma pistolinha que dispara água
e nem um bodoque de borracha envelhecida
para ejetar essa coisa qualquer que ficou na garganta
vou pegar o café na cafeteira
encher a caneca e tomar sem açúcar
vou pegar o pão na torradeira
e cobri-lo com uns nacos de manteiga
não tenho tempo para ser
um poema de prévert
tomo meu café e saio
e na rua o ipê roxo
me lembra que o grande e nunca banal ciclo da vida veja só meu amigo
continua
e sobretudo deixa a mensagem clara quando alguém escorrega nas flores gosmentas caídas
no chão e precisa ir ao pronto-socorro levar pontos no queixo
no ponto de ônibus tem sempre um rapaz
ouvindo qualquer coisa que soa como erasure
por mim - hoje é sexta - ele que se engane para sempre no fio de seu ipod".
(angélica freitas)
terça-feira, 13 de abril de 2010
QUASE Aprovada lei de acesso a informações públicas
A Câmara dos Deputados acaba de aprovar, às 21h47 deste 13.abr.2010, o projeto de lei de acesso a informações públicas. O Senado agora precisa analisar o texto, que traz imensos avanços para esse direito no Brasil.
O principal avanço é o fim do instrumento do chamado sigilo eterno. Hoje, sem a lei, qualquer documento pode ficar indefinidamente guardado. Com a nova regra, papéis públicos ultrassecretos podem ser classificados por até 25 anos, com uma única renovação desse prazo possível. Ou seja, o prazo máximo é de 50 anos de sigilo.
A lei de acesso brasileira também tem uma abrangência inaudita em comparação com outros países –mesmo com a regra dos Estados Unidos, vigente desde 1966. Aqui, a norma será obrigatória para todos os níveis de governo (prefeituras, Estados e União) e todas as instâncias de poder (Legislativo, Executivo e Judiciário).
Um único retrocesso quase se deu durante a votação de hoje (13.abr.2010). O PSDB queria a retirada da liberação automática de documentos quando vencessem os prazos de sigilo. Seria um atraso, pois depois de 25 anos ou de 50 anos, os papéis só seriam liberados ao público se alguém fizesse um requerimento oficial. Caso contrário, a informação ficaria ainda em sigilo. A posição do PSDB acabou derrotada. Ou seja, depois de vencidos os prazos de sigilo, todos os documentos automaticamente serão obrigatoriamente colocados à disposição do público.
Outro avanço está nas listas de documentos classificados que terão de ser divulgadas, anualmente. Cada órgão público terá dizer quantos documentos colocou em sigilo. Assim, será possível saber, a cada ano, quantos papéis estão sendo mantidos em reserva e qual é a origem de cada um. Esse procedimento permitirá à sociedade acompanhar o processo e cobrar --se for necessário-- a autoridade pública quando os prazos de sigilo prescreverem.
O debate sobre esse projeto de lei começou em 2003, quando foi realizado um amplo seminário internacional em Brasília, com participação de várias entidades da sociedade civil. Daí nasceu o Fórum de Direito de Acesso a Informações Públicas, uma coalizão de mais de 20 entidades que fez o lobby a favor da lei.
Mais de 70 países no mundo já têm legislação semelhante. O Brasil está chegando lá. Atrasado, mas chegando. Isto é, se o Senado trabalhar agora e votar rapidamente o projeto.
Fonte: http://uolpolitica.blog.uol.com.br/arch2010-04-11_2010-04-17.html
A Câmara dos Deputados acaba de aprovar, às 21h47 deste 13.abr.2010, o projeto de lei de acesso a informações públicas. O Senado agora precisa analisar o texto, que traz imensos avanços para esse direito no Brasil.
O principal avanço é o fim do instrumento do chamado sigilo eterno. Hoje, sem a lei, qualquer documento pode ficar indefinidamente guardado. Com a nova regra, papéis públicos ultrassecretos podem ser classificados por até 25 anos, com uma única renovação desse prazo possível. Ou seja, o prazo máximo é de 50 anos de sigilo.
A lei de acesso brasileira também tem uma abrangência inaudita em comparação com outros países –mesmo com a regra dos Estados Unidos, vigente desde 1966. Aqui, a norma será obrigatória para todos os níveis de governo (prefeituras, Estados e União) e todas as instâncias de poder (Legislativo, Executivo e Judiciário).
Um único retrocesso quase se deu durante a votação de hoje (13.abr.2010). O PSDB queria a retirada da liberação automática de documentos quando vencessem os prazos de sigilo. Seria um atraso, pois depois de 25 anos ou de 50 anos, os papéis só seriam liberados ao público se alguém fizesse um requerimento oficial. Caso contrário, a informação ficaria ainda em sigilo. A posição do PSDB acabou derrotada. Ou seja, depois de vencidos os prazos de sigilo, todos os documentos automaticamente serão obrigatoriamente colocados à disposição do público.
Outro avanço está nas listas de documentos classificados que terão de ser divulgadas, anualmente. Cada órgão público terá dizer quantos documentos colocou em sigilo. Assim, será possível saber, a cada ano, quantos papéis estão sendo mantidos em reserva e qual é a origem de cada um. Esse procedimento permitirá à sociedade acompanhar o processo e cobrar --se for necessário-- a autoridade pública quando os prazos de sigilo prescreverem.
O debate sobre esse projeto de lei começou em 2003, quando foi realizado um amplo seminário internacional em Brasília, com participação de várias entidades da sociedade civil. Daí nasceu o Fórum de Direito de Acesso a Informações Públicas, uma coalizão de mais de 20 entidades que fez o lobby a favor da lei.
Mais de 70 países no mundo já têm legislação semelhante. O Brasil está chegando lá. Atrasado, mas chegando. Isto é, se o Senado trabalhar agora e votar rapidamente o projeto.
Fonte: http://uolpolitica.blog.uol.com.br/arch2010-04-11_2010-04-17.html
segunda-feira, 12 de abril de 2010
recado
Meu bem que hoje me pede pra apagar a luz
E pôs meu frágil coração na cruz
No teu penoso altar particular
Sei lá, a tua ausência me causou o caos
No breu de hoje eu sinto que
O tempo da cura tornou a tristeza normal
E, então, tu tome tento com meu coração
Não deixe ele vir na solidão
Encabulado por voltar a sós
Depois que o que é confuso te deixar sorrir
Tu me devolva o que tirou daqui
Que o meu peito se abre e desata os nós
Se, enfim, você um dia resolver mudar
Tirar meu pobre coração do altar
Me devolver, como se deve ser
Ou, então, dizer que dele resolveu cuidar
Tirar da cruz e o canonizar
Digo faça o melhor que lhe parecer
Teu cais deve ficar em algum lugar assim
Tão longe quanto eu possa ver de mim
Onde ancoraste teu veleiro em flor
Sem mais, a vida vai passando no vazio
Estou com tudo a flutuar no rio
Esperando a resposta ao que chamo de amor
(altar particular, maria gadú)
E pôs meu frágil coração na cruz
No teu penoso altar particular
Sei lá, a tua ausência me causou o caos
No breu de hoje eu sinto que
O tempo da cura tornou a tristeza normal
E, então, tu tome tento com meu coração
Não deixe ele vir na solidão
Encabulado por voltar a sós
Depois que o que é confuso te deixar sorrir
Tu me devolva o que tirou daqui
Que o meu peito se abre e desata os nós
Se, enfim, você um dia resolver mudar
Tirar meu pobre coração do altar
Me devolver, como se deve ser
Ou, então, dizer que dele resolveu cuidar
Tirar da cruz e o canonizar
Digo faça o melhor que lhe parecer
Teu cais deve ficar em algum lugar assim
Tão longe quanto eu possa ver de mim
Onde ancoraste teu veleiro em flor
Sem mais, a vida vai passando no vazio
Estou com tudo a flutuar no rio
Esperando a resposta ao que chamo de amor
(altar particular, maria gadú)
sexta-feira, 9 de abril de 2010
"Entre os que para elas [as ciências humanas] se voltavam, mas também entre os estudiosos de filosofia, difundiu-se então no Brasil a prática de lançar mão de Nietzsche como caixa de ferramentas e de utilizar como operadores conceitos seus. Não se tratava, por certo, de reconstituir o seu pensamento ou de reinscrevê-lo em sua época, assinalando débitos e créditos. Não se tratava tampouco de cotejá-lo com outros sistemas filosóficos ou de comparar verdades doutrinárias, apontando afinidades e divergências. Atentos àquilo que o discurso nietzschiano suscitava, procuravam com a genealogia pôr sob suspeita as mais diversas formações ideológicas.
A mim sempre pareceu que não é enquanto comentador de Nietzsche que Foucault revela todo o seu brilho." (Scarlett Marton, "Nietzsche e a cena brasileira", p. 206)
quinta-feira, 8 de abril de 2010
segunda-feira, 5 de abril de 2010
hallo, meine Liebe...
hier bin ich, am Telefon
ja, bin ich am Telefon?
ich weiss nicht was ich sagen soll
ich weiss noch nicht mehr
was ich sagen soll
bin nur hier, am Telefon
.
hallo, meine Liebe...
hier bin ich, am Telefon
ja, bin ich am Telefon?
ich weiss nicht was ich sagen soll
ich weiss noch nicht mehr
was ich sagen soll
.
hallo meine Liebe
hier bin ich, deine Liebe, am Telefon
ja, bin ich am Telefon?
ich möchte viel von Dir erinnern
ich möchte viel von Dir wissen
aber ich weiss nicht mehr warum
.
hallo meine Liebe
hier bin ich, deine Liebe am Telefon
ich weiss nicht was ich sagen soll
nun bin ich am Telefon
.
hallo meine Liebe
hier bin ich, deine Liebe, am Telefon
hallo? hallo?
wo bist du denn?
hast du eine Freundin, oder
soll ich einen neuen Mann haben?
neuen neuen, neuen neuen
.
hallo meine Liebe
hier bin ich, deine Liebe, am Telefon
ich möchte viel von Dir wissen,
oder, möchte ich?
.
hallo meine Liebe
hier bin ich, deine Liebe, am Telefon
ich habe keinen Stolz mehr!
die Leute in der Welt,
in der ganzen Welt
die Leute sind Stolz weiss zu sein
stolz schwarz zu sein
.
ich habe keinen Stolz mehr
wir haben keine Liebe mehr
wir haben nur zwei Telefonnummern
(telekphonen, de karina buhr)
hier bin ich, am Telefon
ja, bin ich am Telefon?
ich weiss nicht was ich sagen soll
ich weiss noch nicht mehr
was ich sagen soll
bin nur hier, am Telefon
.
hallo, meine Liebe...
hier bin ich, am Telefon
ja, bin ich am Telefon?
ich weiss nicht was ich sagen soll
ich weiss noch nicht mehr
was ich sagen soll
.
hallo meine Liebe
hier bin ich, deine Liebe, am Telefon
ja, bin ich am Telefon?
ich möchte viel von Dir erinnern
ich möchte viel von Dir wissen
aber ich weiss nicht mehr warum
.
hallo meine Liebe
hier bin ich, deine Liebe am Telefon
ich weiss nicht was ich sagen soll
nun bin ich am Telefon
.
hallo meine Liebe
hier bin ich, deine Liebe, am Telefon
hallo? hallo?
wo bist du denn?
hast du eine Freundin, oder
soll ich einen neuen Mann haben?
neuen neuen, neuen neuen
.
hallo meine Liebe
hier bin ich, deine Liebe, am Telefon
ich möchte viel von Dir wissen,
oder, möchte ich?
.
hallo meine Liebe
hier bin ich, deine Liebe, am Telefon
ich habe keinen Stolz mehr!
die Leute in der Welt,
in der ganzen Welt
die Leute sind Stolz weiss zu sein
stolz schwarz zu sein
.
ich habe keinen Stolz mehr
wir haben keine Liebe mehr
wir haben nur zwei Telefonnummern
(telekphonen, de karina buhr)
sábado, 27 de março de 2010
1.
em meio à densidade da folhagem
verde-marinho
nozes descascadas
tantas ressoam ao toqui do vento
sons minúsculos conjuntos sucessivos crescentis
até qui, após, somenti o levi
farfalhar de fulículas frescas
2.
tá táa tum
nu fundu, tâaaaam
enquantu a frondosa mangueira chacualha as caderas
da copa composta poco comportada
3.
antes qui si dismanchi
a primera gota d'água
nu duru chão
chovem galhos, folhas secas i amarelas
o vento dança mil rodopius
o ar úmidu ambienta vivamenti as quedas
4.
roncu di ursu
istrondo grave di montanha em desmoronamentu
a fomi dos céus
a profunda garganta dus céus si abri
para as crianças quandu si fecham as nuvens geladas
qui ralham trovões i as arrepiam
5.
i a profecia se faz:
- ô, capeta teimosu, sai daí, vai caí uma manga verdi na tua cabeça!
6.
daquela árvori ao ladu, peladinha,
palcu vertical da trepadera tinhosa
moradora dus céus mais altus
se pressentia u movimentu solene,
mas nenhum som nenhuma folha nenhum galhu
que ela tivesse caíra
40 imagens/seg., um esforçu magníficu,
a tensão da madeira
estalavam us nervus du troncu, dilantandu
brechas de ar que na volta se preencheriam
com mais madera
que cedia, resistência vencida.
- vencida vírgula: ô fia, num é qualqué ventinho qui mi derruba...
em meio à densidade da folhagem
verde-marinho
nozes descascadas
tantas ressoam ao toqui do vento
sons minúsculos conjuntos sucessivos crescentis
até qui, após, somenti o levi
farfalhar de fulículas frescas
2.
tá táa tum
nu fundu, tâaaaam
enquantu a frondosa mangueira chacualha as caderas
da copa composta poco comportada
3.
antes qui si dismanchi
a primera gota d'água
nu duru chão
chovem galhos, folhas secas i amarelas
o vento dança mil rodopius
o ar úmidu ambienta vivamenti as quedas
4.
roncu di ursu
istrondo grave di montanha em desmoronamentu
a fomi dos céus
a profunda garganta dus céus si abri
para as crianças quandu si fecham as nuvens geladas
qui ralham trovões i as arrepiam
5.
i a profecia se faz:
- ô, capeta teimosu, sai daí, vai caí uma manga verdi na tua cabeça!
6.
daquela árvori ao ladu, peladinha,
palcu vertical da trepadera tinhosa
moradora dus céus mais altus
se pressentia u movimentu solene,
mas nenhum som nenhuma folha nenhum galhu
que ela tivesse caíra
40 imagens/seg., um esforçu magníficu,
a tensão da madeira
estalavam us nervus du troncu, dilantandu
brechas de ar que na volta se preencheriam
com mais madera
que cedia, resistência vencida.
- vencida vírgula: ô fia, num é qualqué ventinho qui mi derruba...
segunda-feira, 22 de março de 2010
chupa meu grelo
come meu cu com um conssolo
eu gosto é de rola grossa
fico de quatro por hobby
tem que comer e pegar nos meus peito ao mesmo tempo
quero gozar na sua boca, me liga
então vamos fazer como os meninos e marcar linha sem compromisso
procuro um casal para um casual
lésbica, e daí?
abre tudo pra mim na privada, gatinha
- que engraçadinhas as meninas na porta do banheiro.
come meu cu com um conssolo
eu gosto é de rola grossa
fico de quatro por hobby
tem que comer e pegar nos meus peito ao mesmo tempo
quero gozar na sua boca, me liga
então vamos fazer como os meninos e marcar linha sem compromisso
procuro um casal para um casual
lésbica, e daí?
abre tudo pra mim na privada, gatinha
- que engraçadinhas as meninas na porta do banheiro.
domingo, 21 de março de 2010
oh my lover (p.j. harvey)
Oh my lover Don't you know it's alright You can love her, You can love me at the same time, Much to discover, I know you don't have the time but Oh my lover Don't you know it's alright Oh my sweet thing Oh my honey thighs Give me your troubles I'll keep them with me Take at your leisure Take whatever you can find but Oh my sweet thing Don't you know it's alright It's alright It's alright There's no time So it's alright What's that color Forming around your eyes Waltz my lover Tell me that it's all right Just another Before you go Go away Oh my lover Why don't you just say my name And it's alright Say it's alright There's no time
sábado, 20 de março de 2010
não se é fatalista sem acreditar que haja uma separação radical entre pessoas e coisas, e que haja algo como um destino preestabelecido. essa cisão significa manter o abismo entre o sentir e o agir, se isso fosse possível. de algum modo, implica em inação. des-cisão é tomar nas mãos o que se vê, fundir causa no efeito ou consequência em falta de razão. não dá pra não influenciar o futuro, a inação também o gestiona. o discurso fatalista é uma forma de fazê-lo fingidamente.
terça-feira, 16 de março de 2010
Isopor
(kléber albuquerque)
.
.
Que a luz da lua escorra
Pela pele, pelos pêlos
E que raios de sol embaracem seus cabelos
Que a vida lhe dê muita saliva
Pra lamber sonho em carne viva
Que seu riso não tenha o mínimo pudor
Que os ventos soprem sempre a seu favor
Que você encontre a cama feita, a mesa farta
A casa em festa
Que a boa estrela grude no meio de sua testa
E que o mal tenha paredes de isopor
Tudo de bom
Pela pele, pelos pêlos
E que raios de sol embaracem seus cabelos
Que a vida lhe dê muita saliva
Pra lamber sonho em carne viva
Que seu riso não tenha o mínimo pudor
Que os ventos soprem sempre a seu favor
Que você encontre a cama feita, a mesa farta
A casa em festa
Que a boa estrela grude no meio de sua testa
E que o mal tenha paredes de isopor
Tudo de bom
terça-feira, 9 de março de 2010
quinta-feira, 4 de março de 2010
quarta-feira, 3 de março de 2010
essa não, essa não / tudo de você eu esperava / menos esse tipo de traição / bem no momento da precisão / cê me coloca assim de lado / como se eu fosse um trapo / bota um vestido decotado / põe flores no cabelo amarrado / sai e não diz que volta cedo / ai meu deus o que que eu faço? / depois que perdi o emprego / parece que divorciei // pois quem jurou que me amava / é aquela que me causa / a maior mágoa//.
sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010
OS INQUILINOS
Vagner Geovani Ferrer
O dia estava bom, era uma quinta feira fazia bastante sol e no trabalho o mercado estava fraco, aí então o patrão resolveu nos dispensar, como eu ainda estou estudando, também resolvi chegar em casa e não fui à escola. Moro em uma rua sem saída e lá no bairro todo mundo se conhece, na hora que eu cheguei ainda estava claro e a molecada estava bagunçando na rua, quando eu estava abrindo o portão para entrar o meu vizinho, um senhor gente fina que morava do lado de casa, me chamou e me contou a novidade. Fala, rapaz!, me cumprimentou. E aí Sr. Dionízio, respondi com um grande sorriso, pois o Sr. Dionízio era um vizinho e tanto, não tinha nenhum tipo de problemas com a vizinhança, ele era separado da sua mulher e morava sozinho. Ele me contou que sua mulher tinha alugado a casa dos fundos novamente e que os inquilinos eram três rapazes solteiros e de boa família, do meu portão observava eles descarregando o caminhão e o Seu Dionízio, como já disse, um cara legal, foi ajudá-los e dar boas vindas.
No primeiro dia os rapazes ficaram arrumando a casa até tarde da noite, falavam alto e davam risadas e rolou até umas cervejinhas.
Lá em casa eu e minha esposa conversávamos , e lembrávamos que, há alguns meses, a mulher de Dionízio já havia alugado a casa para uma senhora que, por alguns tempos, deu o maior trabalho para o Dionízio. Esta mulher foi praticamente expulsa de onde morava, porque só trazia problema aos vizinhos, ela arrumava confusão com todo mundo do outro bairro.
A mulher do Dionízio já conhecia esta mulher encrenqueira também, e ofereceu a casa dos fundos. O Dionízio ficou morando sozinho na casa da frente para ela morar com as duas filhas na casa dos fundos, pois esta senhora também era separada.
Dionízio e sua ex-esposa eram separados por motivo de traição, quando mudaram para o bairro eles pareciam se dar muito bem. Mas com o passar dos tempos, Dionízio ficou sabendo que sua esposa o traía. Mas ele não podia fazer nada porque ele estava com problemas de saúde, tinha sua coluna toda fora do lugar e foi aposentado por invalidez, sua mulher trabalhava à noite e lá no bairro ninguém sabia o que ela fazia.
Quando chegava o final de semana, a mulher do Sr. Dionízio saía e o deixava sozinho, e quando ela ficava por lá era encrenca, uma vez ela bateu com o martelo na cabeça dele com a parte que puxa pregos e o coitado perdeu tanto sangue debaixo do chuveiro que se eu e um colega não chegássemos a tempo, acho que o pior iria acontecer. Naquele final de semana passei o dia todo e um pedaço da noite no hospital com o Sr. Dionízio.
Sua esposa não gostava mais dele, e queria vender a casa, para poder ir embora com o seu outro parceiro, mas, como ele não podia trabalhar mais e a justiça deu direitos iguais, o Sr. Dionízio estipulou um valor na casa, assim, quando eles fizessem negócio , ele poderia comprar uma casinha pequena para morar sozinho.
Então, como eu estava dizendo, eu e minha esposa ficamos horas e horas conversando, e voltamos a lembrar que a mulher que morava antes na casa do Dionízio deu muito trabalho para ele também, ela o agrediu várias vezes e o coitado ia falar com a sua ex-mulher, que a inquilina estava criando problemas, e ela nem se quer dava ouvidos para ele. Até que um dia a mulher agrediu o Dionízio na rua e bateu nele e quebrou os seus óculos. Então todos lá na rua ficaram revoltados, e um de cada vez ligava para a ex-mulher do Dionízio e fazia uma reclamação até ela dar um jeito, porque aquilo já havia ultrapassado os limites. O Dionízio estava sofrendo demais com aquela mulher, aí então ela foi embora.
O tempo foi passando e os novos inquilinos do Dionízio eram muito estranhos, eles ficavam o dia todo dentro da casa e a noite saíam e voltavam de madrugada, todos de porre e falando baixo, talvez era porque saíam todos os dias da semana e quando chegavam de madrugada não queriam incomodar os vizinhos, pois ali no bairro todos trabalhavam e a rua durante a semana era bem deserta.
Num final de tarde de sábado, eu estava de folga e fui lavar o carro, então eles estavam chegando e um deles nem me cumprimentou e me perguntou, aí, mano, qual é o ano desse carro?, e eu respondi, mas nem olhei para ele porque eu o achei muito folgado. Então ele disse, é um belo carro, hein?
Lá em casa todo mundo acorda cedo, meus filhos vão para a escola às cinco e quarenta e cinco da manhã e eu vou trabalhar às seis, então minha esposa fica sozinha até à uma da tarde.
Há alguns dias, uma colega foi fazer uma visita para minha mulher. Já havia algum tempo que elas não se viam. Quando cheguei em casa minha mulher me chamou para conversar, meus filhos já estavam dormindo e ela estava me esperando para falar e disse, hoje minha colega veio me visitar, então e aí? eu respondi, e minha mulher falou que estava tudo bem com ela, mas quando ela estava indo embora, assim que chegaram no portão, sua colega viu uma saveiro cinza, encostada na garagem do Dionízio, então ela perguntou para a minha esposa, de quem é esse carro? E minha esposa respondeu, de uns rapazes que estão morando aí na casa do Dionízio. Então ela falou a minha esposa que na outra semana, quando ela estava indo trabalhar por volta das cinco horas, ela viu o mesmo carro, ia em direção a uma moça que esperava o ônibus para ir trabalhar, do outro lado da rua, quando eles pararam o carro perto da moça, o ônibus chegou e a moça assustada subiu correndo para dentro do ônibus, e ela disse também que sua sorte foi que o seu ônibus já estava vindo, porque eles viram ela no ponto.
Depois daquele dia, começamos a ficar mais atentos com os vizinhos e, como sempre, começaram a chegar as conversas, uns comentavam que não eram gente de bem, diziam que só saíam de casa de noite para não serem reconhecidos, outros comentários era que saíam à noite para roubar ônibus. Mais tarde veio outro comentando que eles moravam na favela do C.S.U., uma favela perigosa próxima ao nosso bairro, lá tem toque de recolher e quem estiver fora de casa depois do toque leva chumbo. Lá o bicho pega, uma vez encontraram um homem, um chefe de família todo picado. A polícia nem quis saber, foi lá e só recolheu os pedaços e foi embora.
Nossa, eu estava louco para ver o Sr. Dionízio. Já fazia algum tempo que já não o encontrava, mas ele estava bem, ele tinha arrumado um emprego e estava contente, estava trabalhando naquele serviço que os velhinhos andam encima dos caminhões da Sabesp, para fazer buracos nas ruas, coitado dele, mal conseguia levantar uma enxada.
Passado uns dias, num domingo, eu lavando o carro na garagem de casa, novamente um dos inquilinos do Dionízio estava em frente da casa e me cumprimentou e eu respondi, era outro rapaz, parecia legal e ainda brincou comigo, puxa você vai gastar o seu carro de tanto que o lava, e deu risada e foi só isso. Em seguida chegou o Dionízio aí ficamos conversando, então ele me disse que estava um pouco chateado com os rapazes, porque estava acordando cedo e os caras com o som ligado e bebendo a noite toda, e ele não estava conseguindo dormir, me disse também que dois dias atrás, foi falar com eles a respeito do barulho e eles o responderam mal, então eu fiquei quieto, ele falou, porque eles estavam bêbados e eu não queria arrumar nenhum tipo de problemas.
Mais tarde em uma terça feira, os caras chegaram de madrugada fazendo o maior barulho, uma boa parte dos vizinhos foram aos pés das janelas para olhar e ouvir em sigilo o que havia acontecido, eles tinham batido o carro e estavam discutindo até que um deles empurrou o outro e disse, você não precisava fazer aquilo, mano! Aí o outro disse, o meu serviço é por inteiro, falô?, furei o cara só que não tinha certeza que ele tinha subido certo? voltei la para ver o fulano, o cara ainda estava gemendo então terminei o serviço, mandei o cara pro saco, certo?
Depois daquele dia o clima mudou lá no bairro e os três rapazes notaram a mudança e começaram a fazer escândalos no quintal do Dionízio, iam nos bares dali do bairro e arrumavam brigas com todos por lá. Só que o negocio começou a esquentar, existia um time de futebol do bairro e a rapaziada já estava na sede de pegar os caras, mas eles apareciam só quando tinha uma ou duas pessoas no bar. Era estranho que um deles nunca saía de manhã, só de noite, este era o cara que nunca deixava o serviço pela metade.
Outro dia eu estava em casa de novo, era mais um final de semana, e o Sr. Dionízio foi me procurar, me chamou no portão e pediu para entrar, achei esquisito, ele nunca quis entrar em casa. Então convidei-o para tomar um café, sentamos em frente da cozinha da minha casa, num puxadinho onde às vezes eu e minha esposa passamos algumas horas conversando. Aí então eu perguntei, e aí, Dionízio, como é que você está no novo emprego? Ele não me disse nada sobre o novo emprego, ele só falava dos seus inquilinos, mas eu não podia fazer nada porque nunca vi acontecer nada de estranho entre eles e o Dionízio. Então ele começou a tremer ficou nervoso e começou a me contar, sabia que por estes dias esses caras começaram a beber e na hora que eu estava chegando do serviço vi um deles apavorado escondendo algumas coisas entre os entulhos da minha casa? Notei algo de errado, mas estava com tanto medo deles que não via a hora de entrar para dentro de casa e me trancar lá dentro, só que no meio do quintal um deles me puxou pelo braço, então me assustei e me estranhei com ele, mas ele queria que eu ficasse ali bebendo com eles. Eu disse que não, mas eles insistiram tanto que por causa do medo resolvi ficar. No decorrer da bebedeira percebi que tinha uma menina dentro da casa deles, mas fiquei quieto, ainda bem que por enquanto não havia acontecido nada, os outros dois rapazes saíram e deixaram um deles sozinho com a menina. Resolvi entrar — continuou falando o Sr. Dionízio —, tomei banho e fui para a cama, liguei a televisão e comecei a assistir, escutei alguém bater na porta e estava um pouco nervoso, quando abri a porta, era o cara que estava sozinho com a moça. Ele não falava nada com nada, só queria arrumar confusão, então me disse, aí, meu! tô lá com a mina na maior e você aí, com essa porra ligada na maior altura, se liga, pô, desliga essa porra aí. Mas eu estava em minha casa e não podia deixar ele tomar conta dela né, então empurrei ele para fora e disse, por favor, vai dormir, você está cansado, vai dormir, vai? Ele ficou uma fera e disse, vai dormir o caralho, eu mesmo vou desligar essa porra, seu velho filho da puta. Aí ele me agrediu e a única coisa que pude fazer foi segurá-lo porque ele estava bêbado e mal agüentava parar em pé. Mas ele era mais novo do que eu e mais forte, então ele caiu por cima de mim, tentei livrar-me dele mas ele me segurou pelas pernas e com uma mordida me tirou uma lasca da canela. A dor foi tão grande que criei forças para jogar ele para fora e trancar a porta.
O Dionízio me mostrou sua perna, estava horrível, e eu disse a ele, converse com sua ex-mulher e peça para ela pedir a casa de volta. ele falou que ela disse que eles a pagavam em dia e ela não iria pedir a casa, se ele quisesse, ele que procurasse outro lugar para morar. Perguntei a ele se ela sabia que eles estavam perturbando os vizinhos e tinham o agredido, e ele disse que sim, falou também , que ela disse que se ele estava preocupado, procuraria logo um comprador para a casa e acabava com todos os problemas.
Fiquei com muita pena do Dionízio, e na hora que ele me falou porque estava em casa, fiquei mais triste ainda, ele queria que déssemos os números dos nossos celulares para ele, porque qualquer coisa podia acontecer e nesta hora ele poderia nos ligar. Dei os números para ele, mas me irritei tanto com aqueles caras e eu não podia fazer nada pelo o Sr. Dionízio. Você sabe, eu tenho filhos e minha esposa fica metade do dia sozinha em casa e esses caras não tem nada a perder.
O Dionízio foi embora mancando e eu quase chorando de dó, um senhor que vivia sozinho, começou a chegar mais tarde do serviço só para não encontrar os caras na casa, ou então chegava de mansinho para não acordá-los, para eles pensarem que ele não havia voltado do serviço, acharem que ficou por lá ou então que foi dormir na casa de seu irmão que morava perto e mal ia visitá-lo.
Mais uma vez o Dionízio foi me procurar em casa e o clima parecia estar melhor por lá, me falou que os caras estavam tratando-o bem, é verdade, eu estava no portão por esses dias e o vizinho do outro lado da casa dele me disse a mesma coisa, disse que viu o Dionízio com eles, viu os caras dentro da casa do Dionízio e ele junto, estavam na maior farra. Que bom, pelo menos agora ele dorme mais tranqüilo.
Chegou o final do ano, o Dionízio foi passar o Natal com os caras. Na onde, eu não sei. Só sei que ele voltou bem.
Na última semana do ano, minha esposa me falou que estava lavando louça e viu o Dionízio na garagem fuçando as tranqueiras que os caras deixavam lá, disse que o Dionízio parecia procurar alguma coisa, o que era, ela não sabia. Ela me disse que depois daquele dia os caras começaram a brigar entre eles mesmos.
Passado o fim de ano, muita festa, muita alegria lá na rua todos estavam reunidos, menos os inquilinos do Dionízio, o clima entre eles e a turma do futebol ainda estava quente.
As semanas se passaram e numa bela quinta feira, no dia , 27 de janeiro, um dos colegas da rua estava aniversariando, foi a maior bagunça minha mulher e minha filha estavam na festa, eu e meu filho preferimos ficar assistindo televisão em casa. Tenho um cachorro na minha casa, engraçado, ele estava tão agitado, não parava de latir, pulava e rosnava o tempo todo, pensei que fosse por causa da bagunça na rua, mas achei estranho porque ele parecia querer pular para a casa do Dionízio. Não sei o que estava acontecendo com o meu cachorro, eu gritei várias vezes com ele e ele não me obedeceu, então resolvi entrar para dentro, não iria adiantar nada , ficar brigando com o cachorro. Lá no Dionízio também estava tendo uma festa e os caras estavam bem agitados, naquela noite bebiam e comemoravam não sei o quê, percebi que um deles estava no portão e observava as pessoas na rua.
Foi muito difícil dormir naquela noite, a noitada foi longa, mesmo assim consegui acordar na hora certa para ir trabalhar.
No meu trabalho, no outro dia, por volta das dez da manhã, estava atendendo um cliente quando meu celular tocou, era minha esposa. Ela estava nervosa e chorava muito, na minha cabeça só vinha a pensar nos meus filhos, o que poderia ter acontecido? Minha esposa se controlou e disse para eu ficar tranqüilo, que as crianças estavam bem. Então perguntei o que estava acontecendo e ela me respondeu e disse, mataram o Dionízio. Eu fiquei parado e não acreditei, então pedi para o patrão me liberar mais cedo e contei o caso para ele, então ele me liberou. Quando cheguei em casa, minha esposa me explicou como aconteceu. Disse que estava lavando louça e da janela olhou para a rua e viu descer uma viatura da polícia e depois mais uma, depois outras três e foi chegando, quando ela percebeu, a rua estava tomada por policiais. Ela disse que quando estava clareando o dia, o vizinho do outro lado levantou para trabalhar e notou algo de estranho na casa do Dionízio, viu muito sangue e copos de cerveja espalhado pelo quintal da casa, os batentes da porta da sala do Dionízio também estavam cheios de sangue. Então ele correu para a casa do irmão do Dionízio que morava a duas quadras dali e foi dar o recado, mas chegando lá só estava a sobrinha do Dionízio, seu irmão já tinha saído para trabalhar. Então ela resolveu ir ver o que estava acontecendo. Chegando em frente a casa do Dionízio, ela chamou pelo tio, mas não apareceu ninguém, o portão estava trancado, ela resolveu pular o portão, quando ela subiu, viu que a carroceria da saveiro estava cheia de sangue, então ela saiu correndo e foi ligar para a polícia. No telefone ela fazia a ocorrência e o policial do outro lado da linha pedia as características do seu tio, então ele pediu o endereço dela e do tio e disse para ela esperar por ali mesmo porque eles tinham encontrado um corpo mais ou menos com aquelas características mais estava difícil de reconhecer. O corpo foi despachado ali perto, ao lado de uma represa, e os policiais em segundos chegaram na casa do Dionízio, onde sua sobrinha os esperava. Quando a polícia chegou, notou que a casa estava cheia de sangue no quintal, arrebentaram o portão e entraram na casa. Os caras estavam dormindo, um deles tinha desaparecido e o Sr. Dionízio não estava lá. Os caras estavam tão bêbados que nem sequer levantaram da cama, os policiais levantaram os caras a força, perguntaram do Dionízio e eles confessaram, nós o matamos. Um dos policiais pediu que um responsável fosse reconhecer o corpo, a sobrinha do Dionízio se manifestou, eu vou, senhor. Então subiram na viatura e foram, infelizmente era o Dionízio, seu corpo estava esquartejado, os caras colocaram os pedaços de seu corpo em sacolas e sacos de lixos, os policiais ficaram revoltados. Na rua todos queriam matar os caras, mas os policiais disseram que não podiam mais porque eles estavam presentes e a outra revolta foi que os elementos não foram autuados em flagrante, porque o corpo não estava no local.
Triste fim teve o Dionízio, separaram até o rosto dele, colocaram nariz em um lugar, orelhas em outro, cortaram a língua, seus lábios, arrancaram seus olhos e tudo isso, disse o cara da perícia, fizeram com ele ainda vivo. Coitado, morreu e não pôde contar com a ajuda de ninguém, seus vizinhos fizeram a lei do silêncio, todos nós nos acovardamos, agora já é tarde, não adianta mais, ele se foi de um jeito muito mal, ele se foi.
Ainda na delegacia puxaram a capivara dos elementos e constaram que os caras já eram procurados por outros homicídios, eles tinham identidades falsas, o carro que eles possuíam era roubado e outro meio de garantir o ganho era com drogas que traficavam.
Todos no bairro foram prestar as últimas homenagens ao Sr. Dionízio e lá encontramos todos seus parentes e nos lamentamos juntos. Horas mais tarde, apareceu um senhor com duas crianças, era o dono do bar de um outro bairro. E para deixar-nos com os queixos caídos, ele nos disse, eu também fui até a casa do falecido para ver a tragédia. Fiquei horrorizado quando vi os policiais prendendo aqueles elementos, na noite do crime eles passaram pelo meu bar e procuravam comprar sacos de lixo. Meu filho estava comigo e olhou para eles e disse, nossa, moço, sua roupa está cheia de sangue? Ele respondeu, é, garoto, hoje tivemos um trabalhão, matamos um porco e o dividimos todo em partes e era um porcão, hein! E davam muita risada.
No retorno para casa voltamos nos perguntando , como pode uma pessoa fazer uma barbaridade dessas?, o cara é um monstro, não tem coração. Será que a polícia sabe porque isso foi acontecer?
Assim que chegamos em casa havia um caminhão parado em frente a casa do Dionízio, era sua ex-mulher tirando tudo que era dele e dando uma boa faxina para poder botar a casa para alugar novamente.
Vagner Geovani Ferrer
O dia estava bom, era uma quinta feira fazia bastante sol e no trabalho o mercado estava fraco, aí então o patrão resolveu nos dispensar, como eu ainda estou estudando, também resolvi chegar em casa e não fui à escola. Moro em uma rua sem saída e lá no bairro todo mundo se conhece, na hora que eu cheguei ainda estava claro e a molecada estava bagunçando na rua, quando eu estava abrindo o portão para entrar o meu vizinho, um senhor gente fina que morava do lado de casa, me chamou e me contou a novidade. Fala, rapaz!, me cumprimentou. E aí Sr. Dionízio, respondi com um grande sorriso, pois o Sr. Dionízio era um vizinho e tanto, não tinha nenhum tipo de problemas com a vizinhança, ele era separado da sua mulher e morava sozinho. Ele me contou que sua mulher tinha alugado a casa dos fundos novamente e que os inquilinos eram três rapazes solteiros e de boa família, do meu portão observava eles descarregando o caminhão e o Seu Dionízio, como já disse, um cara legal, foi ajudá-los e dar boas vindas.
No primeiro dia os rapazes ficaram arrumando a casa até tarde da noite, falavam alto e davam risadas e rolou até umas cervejinhas.
Lá em casa eu e minha esposa conversávamos , e lembrávamos que, há alguns meses, a mulher de Dionízio já havia alugado a casa para uma senhora que, por alguns tempos, deu o maior trabalho para o Dionízio. Esta mulher foi praticamente expulsa de onde morava, porque só trazia problema aos vizinhos, ela arrumava confusão com todo mundo do outro bairro.
A mulher do Dionízio já conhecia esta mulher encrenqueira também, e ofereceu a casa dos fundos. O Dionízio ficou morando sozinho na casa da frente para ela morar com as duas filhas na casa dos fundos, pois esta senhora também era separada.
Dionízio e sua ex-esposa eram separados por motivo de traição, quando mudaram para o bairro eles pareciam se dar muito bem. Mas com o passar dos tempos, Dionízio ficou sabendo que sua esposa o traía. Mas ele não podia fazer nada porque ele estava com problemas de saúde, tinha sua coluna toda fora do lugar e foi aposentado por invalidez, sua mulher trabalhava à noite e lá no bairro ninguém sabia o que ela fazia.
Quando chegava o final de semana, a mulher do Sr. Dionízio saía e o deixava sozinho, e quando ela ficava por lá era encrenca, uma vez ela bateu com o martelo na cabeça dele com a parte que puxa pregos e o coitado perdeu tanto sangue debaixo do chuveiro que se eu e um colega não chegássemos a tempo, acho que o pior iria acontecer. Naquele final de semana passei o dia todo e um pedaço da noite no hospital com o Sr. Dionízio.
Sua esposa não gostava mais dele, e queria vender a casa, para poder ir embora com o seu outro parceiro, mas, como ele não podia trabalhar mais e a justiça deu direitos iguais, o Sr. Dionízio estipulou um valor na casa, assim, quando eles fizessem negócio , ele poderia comprar uma casinha pequena para morar sozinho.
Então, como eu estava dizendo, eu e minha esposa ficamos horas e horas conversando, e voltamos a lembrar que a mulher que morava antes na casa do Dionízio deu muito trabalho para ele também, ela o agrediu várias vezes e o coitado ia falar com a sua ex-mulher, que a inquilina estava criando problemas, e ela nem se quer dava ouvidos para ele. Até que um dia a mulher agrediu o Dionízio na rua e bateu nele e quebrou os seus óculos. Então todos lá na rua ficaram revoltados, e um de cada vez ligava para a ex-mulher do Dionízio e fazia uma reclamação até ela dar um jeito, porque aquilo já havia ultrapassado os limites. O Dionízio estava sofrendo demais com aquela mulher, aí então ela foi embora.
O tempo foi passando e os novos inquilinos do Dionízio eram muito estranhos, eles ficavam o dia todo dentro da casa e a noite saíam e voltavam de madrugada, todos de porre e falando baixo, talvez era porque saíam todos os dias da semana e quando chegavam de madrugada não queriam incomodar os vizinhos, pois ali no bairro todos trabalhavam e a rua durante a semana era bem deserta.
Num final de tarde de sábado, eu estava de folga e fui lavar o carro, então eles estavam chegando e um deles nem me cumprimentou e me perguntou, aí, mano, qual é o ano desse carro?, e eu respondi, mas nem olhei para ele porque eu o achei muito folgado. Então ele disse, é um belo carro, hein?
Lá em casa todo mundo acorda cedo, meus filhos vão para a escola às cinco e quarenta e cinco da manhã e eu vou trabalhar às seis, então minha esposa fica sozinha até à uma da tarde.
Há alguns dias, uma colega foi fazer uma visita para minha mulher. Já havia algum tempo que elas não se viam. Quando cheguei em casa minha mulher me chamou para conversar, meus filhos já estavam dormindo e ela estava me esperando para falar e disse, hoje minha colega veio me visitar, então e aí? eu respondi, e minha mulher falou que estava tudo bem com ela, mas quando ela estava indo embora, assim que chegaram no portão, sua colega viu uma saveiro cinza, encostada na garagem do Dionízio, então ela perguntou para a minha esposa, de quem é esse carro? E minha esposa respondeu, de uns rapazes que estão morando aí na casa do Dionízio. Então ela falou a minha esposa que na outra semana, quando ela estava indo trabalhar por volta das cinco horas, ela viu o mesmo carro, ia em direção a uma moça que esperava o ônibus para ir trabalhar, do outro lado da rua, quando eles pararam o carro perto da moça, o ônibus chegou e a moça assustada subiu correndo para dentro do ônibus, e ela disse também que sua sorte foi que o seu ônibus já estava vindo, porque eles viram ela no ponto.
Depois daquele dia, começamos a ficar mais atentos com os vizinhos e, como sempre, começaram a chegar as conversas, uns comentavam que não eram gente de bem, diziam que só saíam de casa de noite para não serem reconhecidos, outros comentários era que saíam à noite para roubar ônibus. Mais tarde veio outro comentando que eles moravam na favela do C.S.U., uma favela perigosa próxima ao nosso bairro, lá tem toque de recolher e quem estiver fora de casa depois do toque leva chumbo. Lá o bicho pega, uma vez encontraram um homem, um chefe de família todo picado. A polícia nem quis saber, foi lá e só recolheu os pedaços e foi embora.
Nossa, eu estava louco para ver o Sr. Dionízio. Já fazia algum tempo que já não o encontrava, mas ele estava bem, ele tinha arrumado um emprego e estava contente, estava trabalhando naquele serviço que os velhinhos andam encima dos caminhões da Sabesp, para fazer buracos nas ruas, coitado dele, mal conseguia levantar uma enxada.
Passado uns dias, num domingo, eu lavando o carro na garagem de casa, novamente um dos inquilinos do Dionízio estava em frente da casa e me cumprimentou e eu respondi, era outro rapaz, parecia legal e ainda brincou comigo, puxa você vai gastar o seu carro de tanto que o lava, e deu risada e foi só isso. Em seguida chegou o Dionízio aí ficamos conversando, então ele me disse que estava um pouco chateado com os rapazes, porque estava acordando cedo e os caras com o som ligado e bebendo a noite toda, e ele não estava conseguindo dormir, me disse também que dois dias atrás, foi falar com eles a respeito do barulho e eles o responderam mal, então eu fiquei quieto, ele falou, porque eles estavam bêbados e eu não queria arrumar nenhum tipo de problemas.
Mais tarde em uma terça feira, os caras chegaram de madrugada fazendo o maior barulho, uma boa parte dos vizinhos foram aos pés das janelas para olhar e ouvir em sigilo o que havia acontecido, eles tinham batido o carro e estavam discutindo até que um deles empurrou o outro e disse, você não precisava fazer aquilo, mano! Aí o outro disse, o meu serviço é por inteiro, falô?, furei o cara só que não tinha certeza que ele tinha subido certo? voltei la para ver o fulano, o cara ainda estava gemendo então terminei o serviço, mandei o cara pro saco, certo?
Depois daquele dia o clima mudou lá no bairro e os três rapazes notaram a mudança e começaram a fazer escândalos no quintal do Dionízio, iam nos bares dali do bairro e arrumavam brigas com todos por lá. Só que o negocio começou a esquentar, existia um time de futebol do bairro e a rapaziada já estava na sede de pegar os caras, mas eles apareciam só quando tinha uma ou duas pessoas no bar. Era estranho que um deles nunca saía de manhã, só de noite, este era o cara que nunca deixava o serviço pela metade.
Outro dia eu estava em casa de novo, era mais um final de semana, e o Sr. Dionízio foi me procurar, me chamou no portão e pediu para entrar, achei esquisito, ele nunca quis entrar em casa. Então convidei-o para tomar um café, sentamos em frente da cozinha da minha casa, num puxadinho onde às vezes eu e minha esposa passamos algumas horas conversando. Aí então eu perguntei, e aí, Dionízio, como é que você está no novo emprego? Ele não me disse nada sobre o novo emprego, ele só falava dos seus inquilinos, mas eu não podia fazer nada porque nunca vi acontecer nada de estranho entre eles e o Dionízio. Então ele começou a tremer ficou nervoso e começou a me contar, sabia que por estes dias esses caras começaram a beber e na hora que eu estava chegando do serviço vi um deles apavorado escondendo algumas coisas entre os entulhos da minha casa? Notei algo de errado, mas estava com tanto medo deles que não via a hora de entrar para dentro de casa e me trancar lá dentro, só que no meio do quintal um deles me puxou pelo braço, então me assustei e me estranhei com ele, mas ele queria que eu ficasse ali bebendo com eles. Eu disse que não, mas eles insistiram tanto que por causa do medo resolvi ficar. No decorrer da bebedeira percebi que tinha uma menina dentro da casa deles, mas fiquei quieto, ainda bem que por enquanto não havia acontecido nada, os outros dois rapazes saíram e deixaram um deles sozinho com a menina. Resolvi entrar — continuou falando o Sr. Dionízio —, tomei banho e fui para a cama, liguei a televisão e comecei a assistir, escutei alguém bater na porta e estava um pouco nervoso, quando abri a porta, era o cara que estava sozinho com a moça. Ele não falava nada com nada, só queria arrumar confusão, então me disse, aí, meu! tô lá com a mina na maior e você aí, com essa porra ligada na maior altura, se liga, pô, desliga essa porra aí. Mas eu estava em minha casa e não podia deixar ele tomar conta dela né, então empurrei ele para fora e disse, por favor, vai dormir, você está cansado, vai dormir, vai? Ele ficou uma fera e disse, vai dormir o caralho, eu mesmo vou desligar essa porra, seu velho filho da puta. Aí ele me agrediu e a única coisa que pude fazer foi segurá-lo porque ele estava bêbado e mal agüentava parar em pé. Mas ele era mais novo do que eu e mais forte, então ele caiu por cima de mim, tentei livrar-me dele mas ele me segurou pelas pernas e com uma mordida me tirou uma lasca da canela. A dor foi tão grande que criei forças para jogar ele para fora e trancar a porta.
O Dionízio me mostrou sua perna, estava horrível, e eu disse a ele, converse com sua ex-mulher e peça para ela pedir a casa de volta. ele falou que ela disse que eles a pagavam em dia e ela não iria pedir a casa, se ele quisesse, ele que procurasse outro lugar para morar. Perguntei a ele se ela sabia que eles estavam perturbando os vizinhos e tinham o agredido, e ele disse que sim, falou também , que ela disse que se ele estava preocupado, procuraria logo um comprador para a casa e acabava com todos os problemas.
Fiquei com muita pena do Dionízio, e na hora que ele me falou porque estava em casa, fiquei mais triste ainda, ele queria que déssemos os números dos nossos celulares para ele, porque qualquer coisa podia acontecer e nesta hora ele poderia nos ligar. Dei os números para ele, mas me irritei tanto com aqueles caras e eu não podia fazer nada pelo o Sr. Dionízio. Você sabe, eu tenho filhos e minha esposa fica metade do dia sozinha em casa e esses caras não tem nada a perder.
O Dionízio foi embora mancando e eu quase chorando de dó, um senhor que vivia sozinho, começou a chegar mais tarde do serviço só para não encontrar os caras na casa, ou então chegava de mansinho para não acordá-los, para eles pensarem que ele não havia voltado do serviço, acharem que ficou por lá ou então que foi dormir na casa de seu irmão que morava perto e mal ia visitá-lo.
Mais uma vez o Dionízio foi me procurar em casa e o clima parecia estar melhor por lá, me falou que os caras estavam tratando-o bem, é verdade, eu estava no portão por esses dias e o vizinho do outro lado da casa dele me disse a mesma coisa, disse que viu o Dionízio com eles, viu os caras dentro da casa do Dionízio e ele junto, estavam na maior farra. Que bom, pelo menos agora ele dorme mais tranqüilo.
Chegou o final do ano, o Dionízio foi passar o Natal com os caras. Na onde, eu não sei. Só sei que ele voltou bem.
Na última semana do ano, minha esposa me falou que estava lavando louça e viu o Dionízio na garagem fuçando as tranqueiras que os caras deixavam lá, disse que o Dionízio parecia procurar alguma coisa, o que era, ela não sabia. Ela me disse que depois daquele dia os caras começaram a brigar entre eles mesmos.
Passado o fim de ano, muita festa, muita alegria lá na rua todos estavam reunidos, menos os inquilinos do Dionízio, o clima entre eles e a turma do futebol ainda estava quente.
As semanas se passaram e numa bela quinta feira, no dia , 27 de janeiro, um dos colegas da rua estava aniversariando, foi a maior bagunça minha mulher e minha filha estavam na festa, eu e meu filho preferimos ficar assistindo televisão em casa. Tenho um cachorro na minha casa, engraçado, ele estava tão agitado, não parava de latir, pulava e rosnava o tempo todo, pensei que fosse por causa da bagunça na rua, mas achei estranho porque ele parecia querer pular para a casa do Dionízio. Não sei o que estava acontecendo com o meu cachorro, eu gritei várias vezes com ele e ele não me obedeceu, então resolvi entrar para dentro, não iria adiantar nada , ficar brigando com o cachorro. Lá no Dionízio também estava tendo uma festa e os caras estavam bem agitados, naquela noite bebiam e comemoravam não sei o quê, percebi que um deles estava no portão e observava as pessoas na rua.
Foi muito difícil dormir naquela noite, a noitada foi longa, mesmo assim consegui acordar na hora certa para ir trabalhar.
No meu trabalho, no outro dia, por volta das dez da manhã, estava atendendo um cliente quando meu celular tocou, era minha esposa. Ela estava nervosa e chorava muito, na minha cabeça só vinha a pensar nos meus filhos, o que poderia ter acontecido? Minha esposa se controlou e disse para eu ficar tranqüilo, que as crianças estavam bem. Então perguntei o que estava acontecendo e ela me respondeu e disse, mataram o Dionízio. Eu fiquei parado e não acreditei, então pedi para o patrão me liberar mais cedo e contei o caso para ele, então ele me liberou. Quando cheguei em casa, minha esposa me explicou como aconteceu. Disse que estava lavando louça e da janela olhou para a rua e viu descer uma viatura da polícia e depois mais uma, depois outras três e foi chegando, quando ela percebeu, a rua estava tomada por policiais. Ela disse que quando estava clareando o dia, o vizinho do outro lado levantou para trabalhar e notou algo de estranho na casa do Dionízio, viu muito sangue e copos de cerveja espalhado pelo quintal da casa, os batentes da porta da sala do Dionízio também estavam cheios de sangue. Então ele correu para a casa do irmão do Dionízio que morava a duas quadras dali e foi dar o recado, mas chegando lá só estava a sobrinha do Dionízio, seu irmão já tinha saído para trabalhar. Então ela resolveu ir ver o que estava acontecendo. Chegando em frente a casa do Dionízio, ela chamou pelo tio, mas não apareceu ninguém, o portão estava trancado, ela resolveu pular o portão, quando ela subiu, viu que a carroceria da saveiro estava cheia de sangue, então ela saiu correndo e foi ligar para a polícia. No telefone ela fazia a ocorrência e o policial do outro lado da linha pedia as características do seu tio, então ele pediu o endereço dela e do tio e disse para ela esperar por ali mesmo porque eles tinham encontrado um corpo mais ou menos com aquelas características mais estava difícil de reconhecer. O corpo foi despachado ali perto, ao lado de uma represa, e os policiais em segundos chegaram na casa do Dionízio, onde sua sobrinha os esperava. Quando a polícia chegou, notou que a casa estava cheia de sangue no quintal, arrebentaram o portão e entraram na casa. Os caras estavam dormindo, um deles tinha desaparecido e o Sr. Dionízio não estava lá. Os caras estavam tão bêbados que nem sequer levantaram da cama, os policiais levantaram os caras a força, perguntaram do Dionízio e eles confessaram, nós o matamos. Um dos policiais pediu que um responsável fosse reconhecer o corpo, a sobrinha do Dionízio se manifestou, eu vou, senhor. Então subiram na viatura e foram, infelizmente era o Dionízio, seu corpo estava esquartejado, os caras colocaram os pedaços de seu corpo em sacolas e sacos de lixos, os policiais ficaram revoltados. Na rua todos queriam matar os caras, mas os policiais disseram que não podiam mais porque eles estavam presentes e a outra revolta foi que os elementos não foram autuados em flagrante, porque o corpo não estava no local.
Triste fim teve o Dionízio, separaram até o rosto dele, colocaram nariz em um lugar, orelhas em outro, cortaram a língua, seus lábios, arrancaram seus olhos e tudo isso, disse o cara da perícia, fizeram com ele ainda vivo. Coitado, morreu e não pôde contar com a ajuda de ninguém, seus vizinhos fizeram a lei do silêncio, todos nós nos acovardamos, agora já é tarde, não adianta mais, ele se foi de um jeito muito mal, ele se foi.
Ainda na delegacia puxaram a capivara dos elementos e constaram que os caras já eram procurados por outros homicídios, eles tinham identidades falsas, o carro que eles possuíam era roubado e outro meio de garantir o ganho era com drogas que traficavam.
Todos no bairro foram prestar as últimas homenagens ao Sr. Dionízio e lá encontramos todos seus parentes e nos lamentamos juntos. Horas mais tarde, apareceu um senhor com duas crianças, era o dono do bar de um outro bairro. E para deixar-nos com os queixos caídos, ele nos disse, eu também fui até a casa do falecido para ver a tragédia. Fiquei horrorizado quando vi os policiais prendendo aqueles elementos, na noite do crime eles passaram pelo meu bar e procuravam comprar sacos de lixo. Meu filho estava comigo e olhou para eles e disse, nossa, moço, sua roupa está cheia de sangue? Ele respondeu, é, garoto, hoje tivemos um trabalhão, matamos um porco e o dividimos todo em partes e era um porcão, hein! E davam muita risada.
No retorno para casa voltamos nos perguntando , como pode uma pessoa fazer uma barbaridade dessas?, o cara é um monstro, não tem coração. Será que a polícia sabe porque isso foi acontecer?
Assim que chegamos em casa havia um caminhão parado em frente a casa do Dionízio, era sua ex-mulher tirando tudo que era dele e dando uma boa faxina para poder botar a casa para alugar novamente.
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